Acabar de ler um romance e entrar em perda por pura saudade dos personagens? Pode acontecer, quando se conclui a leitura de "Pássaros sem Asas", do inglês Louis de Bernières, tornado famoso por "O Bandolim do Capitão Corelli", para seu desgosto passado ao cinema. A galeria de personagens que acompanhamos num lapso de tempo suficiente para operar profundas viragens nas suas vidas é tão humanamente representada que de tão próximas as figuras cremos existirem deveras. Vemo-las evoluir da inocência à crua realidade do "grande mundo", isto é, da geopolítica, neste caso os ditames internacionais que se seguem à derrota do império otomano na I Guerra e à guerra contra a Grécia que veio depois, com toda a casta de brutais e insanes transferências de populações, a tal limpeza étnica de que muito se falou quando implodiu a ex-Jugoslávia. O que devia rico, por ser múltiplo, é um estorvo nas contas nacionalistas e toca a varrer gente, que mal percebe o que lhe acontece, de um lado para o outro.
Era então uma vez Eskibahçe, aldeia otomana, em vésperas da I Guerra, onde turcos, gregos e arménios convivem com a bonomia e a maldade que em regra habita os humanos, contando pouco os credos religiosos ou a origem comunitária para explicar os comportamentos. O melhor e o pior das relações interpessoais não passa por aí, elucida-nos o narrador sem nunca no-lo dizer, e é com eternecida compreensão que desenha este pequeno mundo de aldeãos, muitos com nomes que são um verdadeiro programa: Ali, o Portador da Neve, o Apanhador de Sanguessugas, Philotei, a Bela, Ibrahim, o Louco, os amigos Karavatuk e Mehmetçik, Rustem Bey, Leyla, Tamara, entre outros. Em paralelo à vida na aldeia junto ao Egeu, não longe de Esmirna, é-nos contado o percurso de Mustafa Kemal, mais tarde Atatürk, o papel das potências ocidentais (França, Alemanha, Itália, Reino Unido) e balcânicas (Bulgária, Grécia, Roménia) no devir do que resta do império otomano e que será a república turca.
O ecos do "grande mundo" irão inevitavelmente abater-se sobre a vida na aldeia, até que dela e dos seus habitantes, ora cómicos, ora trágicos, pouco mais restará do que uma ruína e as memória de alguns dos que lá viveram, "pássaros sem asas": "Como não temos asas, somos empurrados para lutas e abominações que não procurámos (...) os anos passam, (...) os rios são bloqueados pela areia e as falésias caem ao mar", escreve Karavatuk ao amigo perdido.
"Pássaros sem Asas" é servido por uma boa tradução de Vítor Cabral e revisão de Salvador Guerra, em que a narrativa flui num estilo vivo, pleno de ironia, talvez porque o narrador não vê outra maneira de falar da desgraça que são as políticas que destroem a existência harmónica daqueles em nome de cujo bem-estar são traçadas.