Nome maior da literatura catalã contemporânea, Josep Pla (1897-1981) começou e terminou nos jornais, produzindo uma obra esmagadora nos seus 47 volumes e mais de 30 mil páginas que vão da reportagem à ficção, à literatura de viagens, à biografia, ao ensaio e ao memorialismo. Editado em 1966 como volume I das suas muito premeditadas Obras Completas, o "Caderno Cinzento", de que os Livros Cotovia nos apresentam uma versão antológica, narra as aventuras na cabeça (mas também no coração e no estômago e, em menor grau, na alma) do jovem Pla entre 1918 e 1919, concluindo com os preparativos da viagem que o levará a Paris onde se iniciará como correspondente de um jornal de Barcelona. A celebrada clareza da escrita de Pla, o seu enfado em relação à ideologia "artiste" - "Tenho uma tendência invencível a desconfiar dos que são demasiado artistas" (p. 38) -, encontra neste destino de publicista a sua justificação plena.
O "Caderno" abre com um registo de 8 de Março de 1918 e com a pergunta da mãe: "- Já sabes que hoje fazes vinte e um anos?" (p. 17). Nunca se sabe tal coisa, como nunca se sabe a juventude se não muito depois, quase sempre demasiado tarde; e daí a decisão que se segue - "Decido começar este diário. Nele escreverei à toa - só para passar o tempo - o que se me irá apresentando." (p. 18) -, numa típica justificação retroactiva, aliás inconvincente, já que nunca somos tomados pela sensação de uma escrita "à toa", que respondesse ao informulado do acaso. A crítica abalou desde cedo o teor armadilhado do "Caderno", escrito substancialmente a posteriori, sabotando tempos e sobrepondo ao ímpeto da mocidade a densidade rememoradora e analítica da maturidade. O "Caderno" esmaga, mesmo em versão compacta, pela diversidade de âmbitos, que vão do micro-registo da vida familiar e, latamente, da domesticidade da remediada burguesia rural catalã, de pequenas e insuperáveis observações climáticas e paisagísticas centradas na sua Palafrugell natal, e na sua região da Empordá, a notações "costumbristas" ou a reflexões sobre a vida moral - mas também à obsessão pela escrita e a literatura, a deriva mundana pelas ramblas e tertúlias de Barcelona, a questão identitária catalã, etc. Obviamente, a sensação de "esmagamento" resulta da afinação a que Pla conduz o seu instrumento linguístico (que é sempre, e de modo indissociável, uma afirmação idiomática forte em prol do catalão) de modo a conseguir traduzir uma fenomenologia muito miudamente operosa e com retroacção sobre a constituição do sujeito, como (e é apenas um exemplo) nas suas extraordinárias observações do mar: "Para ver o mar - para vê-lo a sério - é muito útil desdobrar-se. A surda ressonância que levamos dentro - ressonância que em momentos de agitação do coração cria um estado de confusão mental - não deixa ver nada. A presença de um barulho absorvente imediato também não ajuda. Mas, se nos conseguirmos abstrair da obsessão interna e do estorvo exterior, o mar converte-se num encantamento, numa força insidiosa de penetração lenta que desfaz os sentidos numa difusa vagueza" (p. 55). Numa notável passagem, Pla refere-se ao impacto do Inverno no seu aparelho perceptivo em termos analogamente refinados: "O pensamento enche-se de juventude e de imprecisão. Tudo tem um extremo, uma orelha lançada para o infinito, e mais do que a posse interessa o fervor, o desejo" (p. 136).
É este afinadíssimo instrumento, mas também a capacidade para interrogar os "acidentes da terra" mais insignificantes e elevá-los a uma filosofia moral, que encontramos na extraordinária descrição da tartaruga do jardim, perseguida pelo cão da família, que se diverte a virá-la de barriga para o ar, posição em que ficaria para sempre não fora a intervenção caritativa dos humanos: "Assim, o que acontece ... é que os cães ... são o espírito maligno das tartarugas e os homens e as mulheres a sua providência benigna e adorável" (p. 59). Ou em reflexões sobre o choro e a bondade: "Quando se ouve chorar, adquire-se um ar de boa pessoa - de uma bondade infalível. ... Quando alguém chora, sofre? Os que não choram, sofrem menos?" (p, 109); sobre o tédio: "O tédio, cristãmente aceite, é inefável" (p. 121); sobre o pecado: "O estado permanente do homem é o pecado. ... Mas sair do pecado é impossível. Tão impossível como sair da injustiça. E talvez tão perigoso como sair da injustiça" (p. 136); ou sobre a resolução de problemas decisivos: "um problema [o económico] que só se pode resolver, como todos os reais, com o adiamento" (p. 129).
Naturalmente, os temas maiores do "Caderno" são o sujeito que nele se auto-retrata, voluntária e involuntariamente, e a própria escrita do "Caderno". Pla não hesita em "elaborar uma genealogia fantasista da [sua] família" (p. 73) com misturas de sangue eslavo, romano, hebreu, cujos propósitos culminam na proclamação: "Sou um homem típico do esgoto do Mediterrâneo. Não me importo. Um excesso de loiro, o loiro branco, cansa-me um pouco" (p. 75). Quanto ao retrato moral, parece coadunar-se com o genealógico: "O meu egoísmo é nauseabundo e infecto" (p. 135). Como na ascendência do género das "Confissões", o autor, ou a sua persona, confessa: "Só quando me confronto com o caderno me encontro a mim mesmo e tenho de dar por terminada a comédia diária" (p. 174). Encontrar-se a si mesmo, porém, é encontrar um ser que "vem dos livros", o que seria a marca de uma geração instalada no dissídio entre a vida e os livros: "Os livros dizem-nos que existe o amor, a glória, a bondade, a grandeza. A vida diz-nos que não há nada" (p. 157). Daí o drama da expressão que regressa a todo o instante, trate-se da "verdade", que Pla tende a abordar em termos nietzschianos - "A verdade ... depende dos meios de expressão, e os meus ... são escassíssimos" (p. 80) - ou da intimidade. Mas, quanto a esta, como produzir um "estilo adequado" e um "léxico eficiente" para a expressão da "espontaneidade pura" (p. 98)?
Não surpreende que o "Caderno" termine com a eleição de Proust como autor de uma obra que tanto parece produzir um "realismo esmagador" (p. 218) como superar a encruzilhada dos realismos, sublimando a realidade e "dando-a em toda a sua essência ... e complexidade" (p. 219), o mesmo é dizer, trabalhando o detalhe de forma não-euclidiana (p. 220), dando-lhe corpo e densidade, afirmando a sua necessidade. O "Caderno Cinzento" é, a esse respeito, parte relevante da recepção ibérica e europeia de Proust, e todo ele se empenha numa "recherche" tão condenada ao fracasso como o exercício de escrita e estilo que o autor quando jovem praticava nos montes natais, munido de lápis e bloco, tentando "descrever uma árvore ou as cores do céu": "A coisa surpreendia-me tanto a mim próprio que, se de regresso a casa, sem ter chegado a nenhum resultado - era o mais corrente -, me cruzava com alguém, enrubescia. Era como o ridículo regresso do caçador que não matou nada" (p. 109). O verdadeiro nome deste falhanço cinegético, que é o nome de uma ética secular ao tempo poderosa, é obviamente Literatura. Ou, mais modestamente, uma "secreta e diabólica mania de escrever (com tão pouco resultado), à qual sacrifico tudo" (pp. 125-6).