A reunião da obra de um poeta maior é um momento de especial significado, pelo que implica de consolidação, ou eventual refutação, de perspectivas de leitura dessa obra mas também do período que ela atravessa e, em grande medida, ajuda a definir. Desse ponto de vista, a obra de Manuel António Pina é um curioso índice reverso do período que decorre desde 1974, data da sua estreia, até hoje. Desse ano até 1992, data da primeira reunião da obra, então sob o título Algo parecido com isto da mesma substância, a poesia de Pina conhece uma existência realmente subterrânea, longe ainda da consagração dos tenores da crítica e num lugar secundário entre os então novíssimos (de que se destacavam António Franco Alexandre e João Miguel Fernandes Jorge, em boa parte devido ao trabalho crítico do então jovem turco Joaquim Manuel Magalhães, e ainda Nuno Júdice). Esse troço da sua obra, porém, de que o extraordinário Aquele que quer morrer (1978) é um cume com que apenas podem competir, entre os da sua geração, Os objectos principais (1979) de Franco Alexandre ou algum dos desbordantes livros de Júdice dos anos 70, surge-nos hoje como o extremar de um devir moderno que se edifica, qual anjo novo, sobre as suas próprias ruínas: “Aquele que quer morrer / dança sobre os destroços de tudo”. Uma série de alegorias da escrita percorre os livros desta fase, oscilando entre o cultivo de “técnicas mortas, /o pleonasmo, a pura repetição”, enfim, a “Difícil solidão (...) do escriba” que “atravessa o deserto às costas do melhor amigo” (note-se o baixo nível de ansiedade da influência patente nesta desdramatização da parasitagem do amigo pelo escriba), até à prática do roubo, legitimado pela ideia de revolução e, mais ainda, pela de “comunismo”: “A tomada do poder passa pelo roubo, / passa pela própria perdição e pela de tudo. // Aquele que anuncia a Tempestade / dança, caminhando para o seu fim; / também ele desparecerá sob a / grande Tempestade comunista de tudo.”
A grande “tempestade comunista” da perda dos direitos autorais arrasta, neste primeiro momento da obra de Pina, quer uma visão da História como quietude eterna - “Porque está tudo parado e aquele que escreve / é também eternamente escrito” -, quer a perda radical do autor como sujeito e nome próprio. O autor devém uma coisa que tende a ser nomeada como “isto”, “a pura voz sem sujeito e o fora de ela”, um “isto” que é um (des)concerto de vozes: “Isto está cheio de gente / falando ao mesmo tempo / e alguma coisa está fora de isto falando de isto / e tudo é sabido em qualquer lugar”. Foi também a isto, ou seja, a um estado do Ser, na longa narrativa da crise do sujeito e da metafísica ocidental, que se chamou desde o início o rasto pessoano em Pina. Em rigor, nos textos desta fase fundadora, Pina encena o Grande Teatro do Sujeito, em regime que diríamos lacaniano, produzindo heterónimos paródicos (Clóvis ou Slim da Silva), mas sobretudo parodiando a ilusão do nome como lugar identitário, dando a ver a identidade como uma topografia de lugares nos quais “pensamos onde não estamos e, logo, estamos onde não pensamos” (é difícil ler versos como “Isto está cheio de gente / falando ao mesmo tempo” sem nos vir à mente o lacaniano “Ça parle”). No texto prodigioso Quando há pouco ao telefone..., a questão revela todas as suas implicações gramaticais: “O que é que eu fui sido a ouvir? O que é que foi sido a ser ouvido por mim? A gramática não chega para dizer tudo ao mesmo tempo”.
O período que medeia entre Farewell Happy Fields (1992), obra primeira após a primeira reunião da poesia, e a segunda versão da obra completa, Poesia Reunida (2001), que coincide com o reconhecimento crítico e a mudança para a Assírio & Alvim (por si só, à data, uma instância de canonização), sendo de transição, abranda os rigores da questão gramatical da primeira fase. Se antes se dizia “alguma coisa está fora de isto” dando a ver na gramática a estranheza radical do sujeito e da sua relação ao real, agora prefere-se a declaração: “A realidade é uma hipótese repugnante / fora de mim, entrando por mim a dentro”. A continuidade profunda da obra permanece, bastando confrontar o primeiro verso do livro de estreia - “Os tempos não vão bons para nós, os mortos.” - com os que abrem Farewell: “Entre a minha vida e a minha morte mete-se subitamente / A Atlética Funerária, Armadores, Casa Fundada em 1888”. O que é novo nestes versos é talvez a substituição de uma ideia forte, e tão romântica quanto moderna, de Poesia - essa substância sem nome ou nomeável como “isto” - por uma ideia de Poema, a qual exige um mínimo de anedótico, ainda quando ressalvado. O último livro coligido na reunião de 2001, Nenhuma palavra e nenhuma lembrança, abre aliás com um Primeiro poema que retoma um tópico central em Pina e que ocupará boa parte da sua imaginação nos últimos livros: “A palavra, vida inteira, mata. / O seu silêncio não fala nem cala: ri. / Sem antes, nem depois nem agora. / É o infalável que fala. / Não o ouças: ouve-o.” E o que haveria a ouvir seria “o riso / pleno dos mortos”.
Percebemos, com este volume Todas as Palavras, que uma terceira fase se abre desde a reunião anterior. Se lermos um poema como Separação do corpo, do volume central desta última fase, Os Livros, percebemos que o tópico da mortalidade tanto ecoa os primórdios desta poesia - “A beleza do corpo amado é, eu sei, / lixo orgânico” -, como introduz, por via de um outro tema central no autor, o da memória, o esplendor (fanado) do corpo enquanto presença pura: “A memória, sem o corpo, não cintila nem exalta / e, sem ela, o corpo é incapaz de nudez / e de amor”. Não surpreende, pois, que esta poesia se encaminhe cada vez mais ao encontro das “coisas”, título de um dos grandes poemas do recente Como se desenha uma casa (2011), e poema que nos permite aproximar o último Pina já não do Pound ou Eliot ou Pessoa matriciais, mas antes do Borges poeta, nessa estranha versão de um moderno “desfasado” que é a do poeta argentino, que precisamente por esse desfasamento tende a suscitar reservas (as que não suscita como ficcionista) enquanto poeta grande que contudo é. Todas as palavras, enquanto título provisoriamente final desta obra, permite-nos regressar de novo a versos de Aquele que quer morrer. Por exemplo, a um verso como “Aqui estão as palavras, metei o focinho nelas”, que só na aparência comete à palavra o dom do sentido, pois ao propor a contiguidade animal de corpo e palavra o verso reconfigura a palavra como coisa, a um tempo próxima e distante, daquilo que nela é promessa: a do infalável enquanto voz muda e não mediada do mundo. Ou, como se diz ainda, em clave melancólica, nesse livro: “Que distância entre tudo, sobretudo tão perto de tudo”.
Resta dizer, voltando ao princípio, que este volume ajuda a desarrumar decisivamente a poesia produzida em Portugal a partir dos anos 70. Pois ele evidencia que o real não é algo a que se regresse, por isso que não é coisa materna; que a poesia pode ser uma modalidade de conhecimento contígua da metafísica, dispensando descritivismos ou narratividades autocomplacentes; que a rima é aquilo que os poetas modernos contrabandeiam, nos intervalos da sua má-consciência; que o prefixo “pós” em pós-moderno (se acaso insistirmos neste sintagma dispensável) não quer necessariamente dizer “depois” ou, menos ainda, “contra”; e que, resumindo, vai sendo tempo de desaprender a vulgata da poesia da década de 70 e depois. Mas para isso é necessário ler mesmo todas as palavras, e não apenas a meia dúzia que nos diz bastante.