O facto de a obra de Jorge Sousa Braga se ter afastado há muito da disputa do CPPP (o Campeonato da Poesia Portuguesa Contemporânea) faz esquecer que a sua entrada na nossa cena poética, nos idos de 1981, com a dupla publicação de De manhã vamos todos acordar com uma pérola no cu e Plano para salvar Veneza, foi a todos os títulos um acontecimento. Com essas duas obras publicadas na Fenda, oficina então coimbrã - dois livros, aliás, tipograficamente preciosos -, a poesia portuguesa era visitada, já sem drama, pela contracultura, com a sua teoria de heróis e mártires (Jim Morrison, antes de todos, bem como um Camões que se passeia “Na auto-estrada do norte, de jeans coçados e óculos escuros”, “completamente pedrado”), mas também por um devir zen, propiciado pela tríade “sexo, drogas & flores”, que se harmonizará cada vez mais profundamente com uma prática auto-deflacionada do poético. Livros epocais e acompanhados por uma prática performativa lendária, neles se explora uma densa cartografia das mitologias da decadência - tema tratado num ensaio marcante por Carlos Mendes de Sousa -, oscilando entre a ambição global de Veneza como alegoria do século que se afunda e a local, como no memorável poema Portugal, em cuja declaração de amor-ódio uma geração inteira se pôde reconhecer (Jorge Sousa Braga prestaria um serviço ao país se reescrevesse o poema, adaptando-o aos tempos actuais de crime sem castigo).
A indiferença ao agon literário patenteia-se ainda no facto de a obra de Jorge Sousa Braga não se poder dizer que tenha de facto evoluído. As suas coordenadas ficaram gravadas desde os primeiros livros, quer no repertório temático - a mulher (amor e sexo), o lugar (ruas, cidades, a cidade do Porto), o mundo vegetal e animal -, quer no verso, de uma liberdade livre que vai do haicai ao poema de maior fôlego ou do verso ao poema em prosa. Em vez de evoluir, Sousa Braga optou por viajar por uma série de tradições poéticas, orientais e ocidentais, que com afinco traduziu, aproveitando para explorar as possibilidades da forma antológica em várias das obras com as quais construiu o seu perfil de poeta-leitor.Não surpreende que a obra reunida, em 1991, ainda na Fenda, tenha levado o título feliz O Poeta Nu. Não só porque a nudez é recorrente na cena amorosa a que os poemas de Jorge Sousa Braga regressam, mas sobretudo porque esta é uma poesia que aspira a formas de plenitude que são em simultâneo ocorrências de despojamento. Podíamos chamar a isto uma “política do desarmamento” e ler no regime da sua indiferença ante o social e político mais curto e intrusivo a radicalidade de uma proposta na qual a deflagração ínfima do belo, mas também do abjecto, embora em grau menor, dispensa qualquer caução ou ressalva, valendo por si enquanto rejeição da razão instrumental. E tudo isto sem “crítica”, “negatividade” ou sequer dialéctica, antes no modo oriental de quem oferece o radical espectáculo da contemplação do mundo àqueles que ou são incapazes dela ou a rejeitam como “conivência”.
Se em 2001 A Ferida Aberta, um dos cumes da obra de Jorge Sousa Braga, era o “livro da mãe”, o recente O Novíssimo testamento e outros poemas é “o livro do pai”. Se a primeira parte do livro recupera a Bíblia como matriz textual - e daí títulos que incorporam palavras como novíssimo testamento, génesis, baptismo, iluminação, sermão, epístola, salmo ou aleluia -, a segunda parte explora a “valsa da morte” e a “última morada”, enquanto por seu turno a terceira oscila entre agapantos, árvores, legumes, ervas daninhas e o intermitente anúncio da morte, no poema admirável com que o livro encerra: Semáforo vermelho. O testamento novíssimo deixado pela morte do pai podia ser esse: a percepção aguda de que ao chegar a casa, quer se acelere ou se reduza a velocidade, tudo é em vão: “Fica sempre vermelho quando te aproximas esse semáforo”.
De resto, este é um Jorge Sousa Braga vintage desde os primeiros versos, no poema que dá título ao livro: “Escrevi este testamento com sanguede galinha/ eu que não esqueço nunca a minha condição de pilha-galinhas/ condenado a viver num galinheiro povoado de fantasmas de galinhas-da-Índia patos perus gansos garnizés/ e a cacarejar pela noite fora”. O poeta cita sem vergonha (no caso, Nietzsche e a sua proclamação de que só é válido aquilo que se escreve com o próprio sangue) e decepciona sem qualquer escrúpulo o leitor incauto, substituindo a auto-exigência trágica pela paródia e o humano pelo galináceo. A retórica do anti-clímax, tão cara a Jorge Sousa Braga, regressa associada àquilo a que podíamos chamar uma ética do ínfimo, quando se comparam erroneamente almas pelas suas dimensões: “A minha alma é uma pequena alma entre biliões de outras almas/ Que tamanho tem a alma dum mosquito?” A questão regressa no poema seguinte, Génesis, sobre o princípio do universo, poema enquadrado na física do Big Bang mas que o poeta faz terminar numa espécie de contracção do sublime matemático, saltando do infinitamente grande ao pequeno: “E continua a arrefecer e a expandir-se a expandir-se e a arrefecer/ e a condensar-se para formar galáxias estrelas planetas nebulosas/ e este ramo de rosas”. Este ludismo deceptivo estrutura todo o poema Sermão da Montanha, cuja primeira parte consiste num elenco de nomes de picos montanhosos - “Cho Oyo/ Dhaulagiri/ Evereste...” - a que se segue o breve comentário da segunda: “Quando chegares ao cimo da montanha/ continua a subir”. É nestes momentos que a arte de Jorge Sousa Braga funciona em compacto e escolhe os seus leitores, já que um número considerável deles verá em poemas como este meras brincadeiras sem transcendência. O problema, claro, não está na transcendência, que no poema abunda, mas na brincadeira a que ela é submetida, uma brincadeira entre o zen e o apelo ao consumo de substâncias ilícitas (“Get high!”). Como se sabe, o sentido de humor é um bem muito mal distribuído... Note-se contudo que os dois versos com que o poema encerra poderiam ser “traduzidos” como haicai. Identicamente, várias das estrofes de poemas como Epístola sobre o silêncio e Epístola sobre o mar denotam a mão longamente afeita à tradução de poetas japoneses e chineses, decisivos para aquela auscultação da epifania tão marcante no autor. Alguns exemplos: “Vento por dentro/ Um pensamento/ levanta voo”; “Maresia:/ o coração dum peixe/ enche-se de alegria”; “Noite de breu: onde acaba o mar/ e começa o céu?”.
Iluminação na ponte de Leça é, deste ponto de vista, o poema em que as várias linhas do livro - a iluminação demasiado profana de um semáforo e a epifania bíblica - se cruzam e ecoam: “Arranca PáraPára Arranca/ De súbito a tua cara/ a tua barba branca// Em cima dum contentor/ manobrando um guindaste/ Pai Pai porque/ me abandonaste?” Em nome do pai, por seu turno, é o poema que religa a morte do pai à anamnese anteriormente explorada no belíssimo Baptismo no rio Cávado. Se neste poema se regressa a quando se tinha 15 ou 16 anos - “Estavas nu no meio do rio imerso até à cintura” -, no poema sobre a morte do pai, em que este, nos cuidados intensivos, delira o passado familiar - “A tua mãe - dizias - estava à tua espera/ com um cesto de vime na cabeça” -, é o mesmo rio que regressa de longe: “No fim da noite/ corre um rio”. Tudo se estabiliza enfim em A última morada, um dos grandes textos do autor, explorando o tópico antigo da “morada” (neste caso, fúnebre) como assentimento com o mundo e dispensa da linguagem. Uma certa oralidade informal conduz-nos pelo cemitério - “Quem passa o portão de ferro/ do lado esquerdo estão os teus pais/ e alguns irmãos” -, descrevendo essa comunidade de vizinhos na sua maioria forçados mas resignados e, por fim, cúmplices: “Lentamente/ vão-se restabelecendo cumplicidades/ num mundo onde as palavras/ (e a vida) são desnecessárias”.
O livro não termina contudo sem nos deixar em testamento a imagem da explosão primaveril dos agapantos - “por todo o lado explodem os agapantos” - e um dos mais belos versos da poesia portuguesa de hoje, aquele que estrutura o poema Dias sem árvores: “Aos dias com árvores sucedem-seos dias sem árvores Plátanos// tílias liquidâmbares robínias/ dão lugar a um vazio// sem plátanos tílias liquidâmbares/ robínias numa moldura de frio”. Para que são as palavras necessárias? Para dizer o mundo na sua evidência apática (uma “moldura de frio”) e para nos forçar a contemplar o espectáculo do que nos ignora: “plátanos tílias liquidâmbares/ robínias”.