Em determinados 200 passos teremos subido uns 100 metros. É o violento início de estimulante treking de Sarangkot até Dhampus. Nepal, zona de Pokhara. Paramos para recuperar fôlego. Que se esvai com a paisagem idílica que nos rodeia.
Hamit está sentado. Na soleira da sua lojinha. Sereno, absorto num qualquer mundo. Os seus traços nobres sob pele queimada por cristalina luz logo chamam a atenção. A uns 15 metros, casal de viajantes está e permanecerá petrificado. Contempla o imponente cenário. Sem falar. Ou respirar…
Vou espreitar. “Sentem-se. Nada pagam por isso”, surpreende Hamit, estendendo o braço em direção a uma das cadeiras, na sombra de esplanada com apenas uma mesa.
Percebemos rapidamente que não é nepalês. “Sim, sou de Istambul. Mas isso foi numa outra vida. Agora vivo aqui. Há um ano”, conta.
O que leva alguém a deixar uma cidade encantadora, que desafia todos os sentidos, para viver em remota aldeia de difícil acesso?
Hamit sorri. Sem pressa, olha para um lado. Vira a cabeça lentamente para o outro. Brilha novamente. Agora com cada músculo do seu rosto, o mais sereno que alguma vez contemplei.
Desnecessárias, as palavras. Os imponentes Annapurna a deslizar ora suave, ora abruptamente para vale imenso. Que termina ali, aos nossos pés. Virando o rosto, nova depressão profunda. Fixamo-nos em Pokhara e o seu aconchegante lago.
“Os dias aqui são perfeitos. Esta gente é pura. Longe do turismo, não tem maldade”, começa por explicar.
A vida dura apenas de sol a sol. A higiene pessoal consome-lhe meio dia. “Desço até um lago que tem uma cascata. Sem testemunhas, tomo banho e lavo a roupa. Quando regresso, espera-me alguma tarefa. Há sempre alguém a quem ajudar”.
Hamit não é turista. Nem viajante. Deixou de ser um estranho. Passou a ser parte da família. Já integra a paisagem. O odor. A textura. A magia do local.
“Roupas, carros, computadores, telemóveis, televisão… só coisas que atrapalham a minha vida. Há muito que deixei de sentir a sua falta. Num lugar destes, quem precisa disso?”, prossegue. Imperturbável.
Conta que, “na vida anterior”, levou a namorada turca em férias à Alemanha. “Estava apaixonado. Perdi a cabeça e ofereci-lhe um vestido de 1.000 euros. Reagiu como se nada fosse. Nada mais do que a minha obrigação”.
“Aqui, tenho companheira nepalesa. Há meses levei-a ali abaixo, a Pokhara. Demos a volta ao lago de mão dada. Apenas isso. Era a mulher mais feliz do Mundo. Até hoje diz-me, diariamente, o quanto me ama”, comparou.
Quarentão vivido, Hamit passou por 54 países antes de se estabelecer em Sarangkot: “Não há melhor lugar no Mundo”.
“Para vivermos, tudo o que precisamos é de sol, água e boa atmosfera. E aqui tenho tudo isso. Há um par de anos, fiquei aqui encalhado, em viagem. Agora, permanecerei cá até ao fim da vida”.
Hamit (em turco “pessoa digna de ser elogiada”)