Obra da Rua expressão da Cultura Lusófona
Prega melhor quem arregaça as mangas e lança mãos a uma qualquer rabiça de arado com o nome de Deus no coração, que aqueles que o têm constantemente na boca e lhe fecham o coração. A estes, sabem alguns que os escutam, a voz retorce-se-lhes como minhoca em anzol. (É o próprio Papa Francisco quem reiteradamente o diz). Mas os enganos e eventuais intrujices de uns poucos (muitos que sejam) não são suficientes para explicar o descrédito ou a suspeita generalizada. Conheço quem seja homem para esquecer o nome de Deus nas palavras, mas o tenha desconcertantemente nos actos. Telmo Ferraz é disso exemplo.
Talvez por isso, crentes, agnósticos e ateus encontrem nele o rosto do homem contra todo o determinismo, exploração e injustiça. Uma referência para o melhor da sua humanidade.
“Eu vos bendigo, tabernas de Portugal, única consolação dos trabalhadores...”, escreveu ele em O Lodo e as Estrelas que dedicou aos silicóticos que trabalharam em túneis de minas ou barragens. Foi isso em 1960. A PIDE não gostou e proibiu o livro. “Uma gota de água causou susto!” pela simples razão de dar voz à realidade vivida por muitos na barragem de Picote. Há dias, dizia-me um amigo, que comparando O Lodo e as Estrelas com muitos dos nossos romances neo-realistas via nestes “um neo-realismo gourmet, ou, à inglesa light, soft – não vivido. Que o vivido é o carisma de textos, tanto de Pe. Américo, como de Pe. Telmo.” E perguntava: “Que lugar o de Américo e Telmo no quadro da Literatura Portuguesa do século XX? Apologética, como dizem alguns? Ou realismo realista e pragmático?”. A pergunta aí fica. Sim, porque este homem, depois de se irmanar com o “bando” que vivia debaixo de pedras cobertas com sacos vazios de cimento, depois de idêntico trabalho na barragem de Cambambe, de construir e assistir uma aldeia de leprosos, fez-se Padre da Rua. Encontrou em Padre Américo o companheiro que comia do mesmo pão.
Há precisamente 50 anos, com um grupo de gaiatos pequenos e um antigo gaiato acabado de casar, partiu para Malanje, Angola. Na abandonada fazenda do Culamuxito edificou a Casa do Gaiato de Malanje. Ao tempo, no jornal O Gaiato, escreveu: “Que Deus afaste de nossos corações a veleidade e pretensão de fundadores”. Quanto fez e faz lhe parece o mais elementar e banal dos cumprimentos exigidos a um servo disponível, despojado de bagagem inútil, de mãos vazias, quase nu. Em 50 anos, a aldeia da Casa de Malanje resistiu à guerra colonial, à descolonização e às guerras civis.
Conhecer e aceitar. Compreender e transformar. Resistir e superar parece ser o lema do homem/pai que a conduziu até 2013. Por ali passaram largas centenas de crianças retiradas da rua. Ali se fizeram homens. Muitos são hoje licenciados, alguns doutores e outros ocuparam lugares de destaque no governo de Angola.
É espantoso como Telmo Ferraz, um homem simples, na ausência total de cálculos interessados, atento ao mínimo sulco de lágrima ou de sangue, determinado a apagar-se nas e das pequenas histórias, faz história.
Nuno Grande tinha razão ao afirmar que a “Obra da Rua é uma expressão objectiva da Cultura Lusófona.” Em África, na celebração dos 50 anos da sua presença, a Obra da Rua mantém a mesma actualidade do ano em que nasceu. “Podiam abrir-se 40 Casas do Gaiato e ficavam cheias”.
Que ventos sopram sobre a Obra da Rua em Portugal? Sendo certo que Padre Américo, o santo que a Igreja tarda em reconhecer, é património perene, o maior património da Obra da Rua são as milhares de crianças a quem ela restituiu a dignidade e ajudou a serem homens. Que é feito das esdrúxulas afirmações laudatórias que se ouviram por todo o ano de 1987, centenário do nascimento do Padre Américo?
Perdeu validade a afirmação de que a história da Igreja em Portugal, sobretudo no âmbito da acção social e pensamento pedagógico não poder ser feita à margem das Casas do Gaiato? Em 2009, a Fundação Calouste Gulbenkian atribuiu à Obra da Rua (Casa do Gaiato) o Prémio Educação. Qual o significado desse prémio? Sobejam simplificações enganadoras, injustas na sua generalidade, repetidas com indignação buliçosa, apenas defensáveis em gabinetes de políticos ou redacções de jornalismo apressado. Talvez fosse de repensar abordagens frívolas de coisas sérias. Acreditem que não é questão de obstinação nem de entusiasmo, é perplexidade.