Uma ameaça para todos

Uma ameaça para todos pode ser uma injustiça feita a alguém, escreveu Montesquieu, um espírito maior das Luzes, contemporâneo de Condorcet, com quem este manteve a certa altura uma polémica em torno dos poderes intermédios, hoje diríamos locais, dos representantes. Estas polémicas são sem fim e sem tempo.

Menos relevante certamente em termos de filosofia política do que Montesquieu, Condorcet fez no entanto uma bem menos modesta condenação do esclavagismo e do tráfico de negros. Em O Espírito das Leis, aquele abordara-a tendo como horizonte a Grécia e a Roma antigas. Quanto ao que se passava no seu tempo, considerara que a abolição do tráfico negreiro não devia ser consumada “depressa de mais”, chegando a explicá-la através das diferenças climáticas entre a Europa e África. A França — uma das pontas do triângulo comercial (como Portugal e Espanha o haviam sido) “exportou” cara as Antilhas mais de um milhão de escravos (a abolição plena do tráfico negreiro só teria lugar em 1848).

Nascido em 1743, o Marquês de Condorcet morreu misteriosamente em 1794 no cárcere, para onde um ano antes tinha sido conduzido. Os combates em que envolveu o seu inabalável idealismo e a sua fé no aperfeiçoamento dos homens nem sempre foram bem aceites. Fundindo a racionalidade das Luzes com a sua defesa dos valores morais, Condorcet foi filósofo, publicista e também matemático — criou aliás um método de escrutínio eleitoral, o método Condorcet. Talvez tenha sido aliás dos primeiros a aplicar a matemática às ciências sociais.

Reflexões sobre a escravidão dos negros inclui os textos Ao corpo eleitoral, contra a escravidão dos negros, 3 de Fevereiro de 1789 e Sobre a admissão de deputados dos plantadores de São Domingos à Assembleia Nacional, seguidos de um anexo, Anúncio da publicação da segunda edição francesa de reflexões sobre a escravidão dos negros (1788). O texto é antecedido por um prefácio esclarecedor de João Tiago Proença que enquadra o pensamento e as posições de Condorcet num campo mais alargado, não apenas francês, mas da filosofia politica e moral de então. Os textos são portanto cuidadosamente integrados na sua conjuntura histórica complexa, fervilhante. A Revolução Francesa estava em curso, o comercio negreiro era pujante. Mas só a segunda edição traria algum reconhecimento a Condorcet, que de resto assina como Schwartz, negro em alemão. No centro do debate, a admissão ou não à Assembleia Nacional de deputados representantes dos plantadores de açúcar (e de café) de São Domingos, no Caribe. Condorcet mostra-se aqui um representante da Popularphilosophie. Manipulando sábia e utopicamente a potencial argumentação do adversário, usando e invertendo os seus trunfos, destinando o seu discurso a uma burguesia algo letrada, a sua retórica faz-nos lembrar muitas vezes a do Padre António Vieira na defesa dos índios.

Na época de Condorcet, ao contrario de hoje (?), a abolição da escravatura era inimaginável e o interesse dos colonos, demagogicamente confundido com o interesse nacional, vingava indiferente à moral. Supomos que essa mesma burguesia letrada não se deixaria afectar pelo idealismo alemão nem estaria interessada em debater Hegel e os Princípios da Filosofia do Direito, texto teórico subjacente à luta abolicionista de Condorcet. A partir dele, e da sua tese de que os direitos de todo o ser humano são inalienáveis, imprescritíveis, o autor alega que a personalidade individual de cada um tem uma matriz — uma substância, uma essência — universal e que as exteriorizações dessa substância não fazem perder a unidade da personalidade de todo o ser humano que dela comunga.

Condorcet rebate um a um os argumentos comuns da defesa do esclavagismo na sua demagogia e nas suas manhas: direito de guerra, necessidade, filiação e pena judicial. As guerras muitas vezes instigadas por colonos brancos entre populações negras trariam aos vencedores o direito de reduzir à escravatura os vencidos. Os traficantes de escravos, brancos, arrematam-nos a título de humanitarismo, salvam-lhes a vida. A seguir (re)vendem-nos como coisas. Advogavam os colonos franceses, assim como muitos na metrópole, a impossibilidade de cultivar a terra das colónias sem o trabalho escravo, sobretudo a cana-de-açúcar, que ocupava muita mão de obra, Logo o interesse económico legitima uma acção criminosa. Condorcet mostra-se adepto de uma economia liberal, alicerçada em homens e mulheres livres, em que a concorrência recíproca dos proprietários e dos trabalhadores fixa o preço. Não era o interesse patriótico que justificava a escravatura, mas a avidez dos proprietários Alem do mais, conclui, “não está provado que as ilhas da América não possam ser cultivadas por brancos”. Assim se desmontam e contrariam eficazmente os prováveis argumentos dos que defendem o esclavagismo. À luz das Luzes.

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