Apátrida não é o primeiro livro de Isabel Moreira na área da literatura, mas é talvez, paradoxalmente, aquele que aí a enraíza. A autora é, como se sabe, deputada do Partido Socialista, mesmo se defensora de causas por natureza sem filiação partidária — a sua índole é por natureza apátrida, reinventada por uma causa, uma procura, um sentido, subsumida por uma ética. Como aliás a trajectória delirante deste livro sem género, ficção subliminarmente autobiográfica: “[O segredo] empurra-me a cabeça, depois entra dentro de mim e sai ritmado, gramatical, é subitamente uma intromissão no que só a mim pertence, o meu passado e o meu presente, que são sinónimos.” E sai todo um fluxo torrencial de palavras, ingovernável, que abala as normas da pontuação, da disposição da frase do branco.
Texto superpovoado de marcas de subjectividade, de emoção grafada (interrupções, parêntesis, exortações), Apátrida dá a descobrir uma intimidade que o leitor deslumbrado e ofegante pressente ser extrema, incandescente, despudorada, recôndita, magmática, aflita, aflitiva. Resíduo vivíssimo de um confronto surdo, de uma violência. Trata-se da reconstituição de uma identidade feminina, sobrevivente apesar de, desde os seus cinco anos, ponto de partida assinalado por um curto diálogo com o avô face à paisagem: “Que beleza!”, a criança repete para ouvi-lo rir. E o vento empurrando pelas costas. Talvez aquele o do Cabo da Roca até à ravina: vertigem é a palavra que subsume o todo dessa experiência de visita a várias pátrias e o modo de a transmitir a um interlocutor inventado, um tu “que também sabe, uma pessoa imaginária para dividir um percurso”.
Isabel Moreira escava até ao fundo sem fundo da memória, camada a camada, percorrendo-as todas. A velocidade da escrita embriaga e desnorteia o leitor, que não sabe onde se sustentar perante estas partículas intensivas de vida, de flashes marcantes e dispostos num vórtice. Esse clima angustiado e ardente é animado tanto pelo próprio estilo como pela exposição de uma arte poética, fisicamente patente até na forma como a frase é lançada ao espaço em branco da página. Uma cena, a mesma, pode ir e vir. Uma ponta inacabada de outra acende a seguinte. Metonimicamente, digamos assim: retoma-se, ligeiramente alterado ou acrescentado, o que foi deixado suspenso atrás. Toda esta fala é mais do lado da intensidade e da insistência do mesmo sempre outro, ou de cada vez já outro, pois é impossível a sobreposição absoluta. A figura do duplo acompanha e rege a escrita: são dois eus, são duas mães, são as mesmas imagens continuamente desdobradas, em espelho.
Várias são as âncoras da torrente, trampolins e ao mesmo tempo marcas de um trajecto talvez vivido da narradora que permitem ao leitor a materialização de uma voz: o avô perto do precipício, o desastre e todo um campo semântico à sua volta (as motas e as curvas para o Cabo da Roca, a chuva no asfalto, o sangue, os vidros a partirem-se, “clique, clique, o corpo da mãe morta sobre o seu, um peso imenso, os olhos desta reduzidos a dois “riscos brancos”), o Brasil aos sete anos, São Tomé e as águas infestadas, o avião a explodir de imigrantes e tralha e tralha e tralha, o homem que a possui desumanamente, Trás-os-Montes, a aldeia do pai, cuja procura atravessa o livro. Depois a memória recua mais, rarefaz-se, precipitando-se num tempo anterior: “Só os Pobres têm o espaço inteiro para encontrar a sua Pátria”.
Apátrida é a vários níveis um livro surpreendente e dos mais interessantes que se publicaram em Portugal nos últimos tempos: belo, doloroso, denso, contagiante. Aderindo, a sua recepção é quase física. E já que a pobreza que se sublinha é mais metafísica do que pragmática, talvez se justificasse uma capa de melhor gosto, uma folhinha final antes da capa, uma revisão que eliminasse os erros de ortografia. É quase indecidível se o não-alinhamento à direita do texto é intencional ou descuido editorial.
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