O mundo a diferir

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Rosa Maria Martelo é mais conhecida como ensaísta, não demasiado ortodoxa, sobrepondo campos de força. Professora na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, publicou, entre outros títulos, Carlos de Oliveira e a Referência em Poesia e A Forma Informe. Um excerto de A Porta de Duchamp, o primeiro livro de poesia, configura o seu universo poético: “Uma porta que ele abria quando a fechava porque estava sempre aberta e fechada ao mesmo tempo (...) incapaz de preencher um vazio sem abrir outro vazio (...) tinha-a colocado ali para não esquecer que há em tudo uma parte de nada, um vão impossível de preencher sem que logo se abra outro”.

O título do seu segundo livro, Matéria, não podia ser mais enganador: é um livro feito da inteligência, da atenção e do pensamento, mesmo se repetindo a nostalgia do olhar inaugural, da coisa em si, idêntica, da impossível surpresa inteira do primeiro dia. Como um fruto que se desprendesse inteiro da árvore, um fruto denso, concêntrico, análogo por dentro e por fora, independendo do observador, da crítica e do sujeito. Um fragmento absoluto, como “o ouriço de Frederich Schlegel”: ele, o ouriço, ia e vinha e “nós sonhávamos um corpo aflito, um sonho mais denso”.

A poesia de Rosa Maria Martelo é abstracta, culta, algo irónica; há um sujeito poético que se dissolve num “nós”, que interpela um “tu” ou se transmuta no objecto. O universo antes e depois desse sujeito é irremediável e irreparavelmente disparatado, desunido. O eu retrai-se, recua, desinveste, elegantemente. Delicadeza, elegância, aparente leveza e voo constituem o húmus desta poesia que se depura, passo a passo, até ao osso, até à morte, essa presença antecipada. E não cessa de repetir o mesmo, a não-identidade perene de nenhuma impressão do mundo, nos múltiplos traços da sua diferença, desordem e impossível unidade (Fios). E assim se expande e continua, “apesar de”, diferindo sempre, descoincidindo. Nos corpos, nas imagens ou nos pensamentos, imaginados completos, certos e estáticos, há sempre um “quase-nada” que interfere, que distorce. Uma perturbação que emerge do intervalo e macula a identidade, introduzindo movimento no que parecia imobilizar-se, no que parecia perfeito e absoluto, seja uma linha de fronteira incerta entre os dois azuis do horizonte, uma aragem, o rojar no chão de um vestido, o raminho que começa quase imperceptivelmente a secar: “Da terra não poderia falar./ apenas da estreita linha/ em que o meu vestido passa/ por demais perto do chão// dessa linha/ um pouco sujo/ e tão mais do que real/ onde o tecido arrasta/ e guarda o rasto do passar// dessa leve coincidência/ entre o que está/ e o que passa/ entre o que ondula/ e o que estaca.” Ou o texto final que conjuga explicitamente o já aflorado com outros registos que interessam a Rosa Maria Martelo: “Há, eu sei, um avanço da imagem na linguagem. Entre uma e outra, nesse avanço, um salto, um vazio (...) chegam com atraso, quase como se delas ficasse só a música lançada para diante”. Encontramos na autora uma similitude em ternos de arquitectura do pensamento com outro grande poeta, Manuel Gusmão.

A tonalidade é disfórica, de queda. Aliás, um poema chama-se Cair. É uma poesia de extrema abstracção, por natureza elíptica e hiperonímica, salvaguardando porém frinchas de onde deixa escorrer a lava, e, secretamente, uma certa incandescência. Um poema como Transporte é um bom exemplo disso. O grau de abstracção, ou de depuração, é tal que todo um quadro é subsumido por uma cor, ou aspirado por um ponto dominante, verdadeiro punctum que omite o resto. Hiperboliza-se um ponto mínimo, de resto ausente, invisível: “Interessa-me o inconcreto branquejar/ da roupa no estendal (o branco, não)/ mais do que o peso da água, ver/ que o nada não se vê na água a evaporar// na luz do tecido em contraluz interessa-me/ o vazio suspenso do vazio/ quando a roupa enforma ao vento e sobe/ no arame, interessa o risco que sustém a louca nave/ os voos desabitados e a pequena hora de ninguém”.

Esta poesia é uma excelente surpresa a considerar daqui para a frente. 

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