Olga Roriz, Terra: uma estética sem ética

Terra peca pela previsibilidade e falta de inovação: acrescenta pouco, é parca em ideias e tem uma escolha musical mais desinteressante do que apelativa

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É pelo empenho dos bailarinos que a terra, antes quieta no solo, agora se projecta no espaço aéreo e se funde com a pele Susana Paiva
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Susana Paiva
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Três mulheres e dois homens aparecem para um piquenique, trajados à antiga, bem vestidos, como eram os que detinham a propriedade do território rural sem o trabalhar. A postura de soberania, sem o conhecimento táctil e do esforço, é representada pela hesitação e desconforto que as personagens revelam face ao natural: para a penetrar abrem um caminho limpo, cobrindo metodicamente a terra com toalhas e lenços. É uma introdução muito teatral, explorada na medida certa para explicitar a atitude colectiva e o carácter de cada um, mas também suficientemente liberta para resolver o pressuposto em movimento: uma construção cuidada de poses, oscilações, trejeitos e pausas, uns debruçando-se sobre os outros.

A meio do terreno é possível enfim servir um chá. Depois dessa vitória aconchegante tudo muda: uns tiram os sapatos, outros despem a roupa e lançam-se na descoberta do prazer da matéria, pisando, tocando, deitando-se sobre ela, rebolando, cheirando, acariciando. A mudança afirma-se com um solo de revelação e redenção individual, muito bonito, ao qual sucedem duetos simultâneos de confronto mulher-homem num dilema típico de atracção e desentendimento das relações amorosas.  Momentos de grupo, momentos a solo, partições do grupo e protagonismos ocasionais pontuam uma estrutura dramatúrgica que parece recuperar e interpretar a sentença bíblica “do pó vieste e ao pó voltarás”. Acentua-se a ligação entre o ser humano e a terra, onde está inerente uma dependência vital, porventura esquecida, à qual ora se resiste obstinadamente ora se reconhece e adora.

 Ênfase de uníssonos, jogos de contaminação e troca de frases compõem uma coreografia exigente onde violência e desequilíbrio combinam com sensualidade e calor. Os bailarinos são impressionantes, tanto por darem muito bem conta deste desafio em conjunto como por revelarem a qualidade que os distingue individualmente como corpos-pessoa. É pelo seu empenho que a terra, antes quieta no solo, agora se projecta no espaço aéreo e se funde com a pele. O movimento de altos e baixos trespassa tudo e o efeito é espectacular.

Incessante e encantadora, a dança na terra carrega, porém, um enorme paradoxo: sabemos como é difícil respirar quando a poeira se levanta; e que quão maior e mais rápido é o movimento mais profunda, incontrolável e essencial é a respiração. Na consciência deste facto testemunhar aquela labuta de uma hora, onde as pessoas inalam a terra espalhada sem tréguas, torna-se aflitivo. O sacrificial é emblemático no trabalho de Roriz e por isso é normal surgir de novo; mas aqui aproxima-se perigosamente do martírio que, não sendo uma intenção evidente, aparece como efeito secundário, justificado pela causa maior do deslumbramento.

Para quem conhece menos, Terra é uma introdução eficaz à exaltação estética de imagem e movimento, característica no trabalho de Olga Roriz, que se insere numa família mais consensual da dança contemporânea. Numa perspectiva especializada Terra peca pela previsibilidade e falta de inovação: acrescenta pouco, é parca em ideias e tem uma escolha musical mais desinteressante do que apelativa. A peça valoriza-se mais pela conformidade aos cânones e pela espectacularidade detendo, através da beleza trágica e clareza coreográfica, um poder de entretenimento que cativou a maioria do público.

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