A menina presa no convento

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Passo muitas vezes em frente ao Convento de São Félix, em Chelas, actualmente sede do Arquivo Geral do Exército, mas confesso que nunca me tinha detido a observá-lo. O que acabou por despertar a minha atenção foi ter, por acaso, encontrado um texto sobre a história de D. Leonor de Almeida Portugal Lorena e Lencastre, que ficou conhecida como Marquesa de Alorna ou simplesmente como Alcipe. 
Fiz o ciclo preparatório na Escola Marquesa de Alorna, no Bairro Azul, e, como acontece certamente com a esmagadora maioria das crianças que frequentam escolas com nomes de figuras históricas, na época nunca me dediquei a pensar sobre quem era a poetisa cujo nome eu repetia tantas vezes.

Mas agora nunca mais conseguirei passar em frente ao Convento de São Félix sem recuar até ao século XVIII e ver a imagem de uma criança de oito anos que, juntamente com a mãe, D. Leonor de Lorena e Távora, e a irmã de seis anos, D. Maria Rita, transpõe o portão, atravessa o pátio interior forrado a azulejos, e entra para o mosteiro onde irá passar os 18 anos seguintes.  

A futura Marquesa de Alorna era filha de D. João de Almeida Portugal e neta dos Marqueses de Távora, supliciados publicamente em Belém, em Janeiro de 1759, por ordem do Marquês de Pombal. Tinham sido acusados de participação no atentado falhado contra o rei D. José, ocorrido no dia 3 de Setembro de 1758. As três mulheres foram separadas de D. João, inicialmente preso na Torre de Belém e depois no Forte da Junqueira, e do outro filho e irmão, D. Pedro, então com quatro anos.

Chelas era, no século XVIII, uma zona rural nos arredores da cidade. Dos 18 anos de vida de D. Leonor no seu interior (saiu em 1777, com 27 anos, depois da morte de D. José I, e por ordem de D. Maria I) sabe-se, apesar de tudo, bastante, em grande parte graças à correspondência secreta que as reclusas mantinham com D. João. Um trabalho da investigadora Vanda Anastácio, especialista na vida e obra da Marquesa de Alorna, intitulado As Cartas de Chelas, permite-nos ultrapassar o tal portão e o pátio de azulejos e entrar no mosteiro. 

Aí conta-se um episódio que terá ocorrido uns três anos depois da entrada e que viria na Noticia Biographica da primeira edição das Obras poeticas de D. Leonor d’Almeida, etc., conhecida entre os poetas portugueses pelo nome de Alcippe : “Onze anos ainda ella contava, quando sua mãe muito doente com um ataque de nervos que lhe tomava os movimentos, e precisando de escrever a seu marido; notando em sua filha qualidades que, apesar dos poucos anos, lhe inspiravam confiança, a chamou ao pé do leito em que se achava. E mostrando-lhe umas tiras de papel, todas escriptas de encarnado, lhe disse: ‘Minha filha conhece esta letra? – Parece-me a letra de meu pae. – Com que é escrita? – Parece-me que é com sangue- - Pois bem: é sangue de seu pae. E se a minha filha revelar que vio estes papéis, esse sangue, o meu, e o de minha filha correrá. Preciso de escrever a seu pae, e só minha filha é que tenho para me ajudar.”

A história será um pouco menos dramática, porque a tinta não seria sangue mas sim água tintada com a fervura de pau-brasil. Mesmo assim, conseguimos imaginar o que era o ambiente dentro do convento – onde, apesar de tudo, as mulheres podiam receber visitas de amigas, e onde lhes chegavam importantes obras literárias que terão contribuído para fazer da futura Marquesa a poetisa em que se tornou. 

É numa outra carta, citada por Vanda Anastácio, e dirigida a D. Teresa de Mello Breyner, que D. Leonor se queixa das condições em que vivem “em um corredor escuro e sórdido, com tocas ou casas muito pequenas de uma parte, e outras muito desabridas” e com um cheiro que invade todo o dormitório “de vapor fétido e tão horroroso que somos obrigadas, para não vomitar, nas horas de comer, a queimar continuamente alfazema”, enquanto “pelas jenelas mais deliciosas não entra senão um vapor de couve podre”. Pormenores que oculta nas cartas ao pai, para não o perturbar. 

Quando recebeu as três mulheres, o convento tinha já uma longa história. Há teses segundo as quais já no século VII a.C. existiu um templo romano neste local onde, muito mais tarde, foi fundado o mosteiro para receber as relíquias de S. Félix – reza a tradição que no ano de 666 apareceram nos terrenos em frente ao Largo de Chelas dois grandes caixões em mármore com as relíquias do santo e de doze companheiros martirizados na Catalunha em 301, e que teriam andado à deriva no Atlântico durante três séculos. Mais tarde, o mosteiro acabaria por receber também as relíquias de Santo Adrião e de Santa Natália. 

Mas não será de tantos santos martirizados que me vou lembrar sempre que passar pelo edifício austero no Largo de Chelas e espreitar para o pátio de azulejos. Será dela, da menina de oito anos a pagar por um crime que não cometera. 

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