Diário de um correio de droga
O número de correios de droga detidos em Portugal triplicou desde 2000. Antes eram pessoas totalmente inseridas no meio da droga. Hoje pode ser quem passa por dificuldades ou ganhou a tentação do dinheiro fácil. Alguns são muito jovens, como Jonas.
A noite desagrava inquietudes, como naquele momento, àquela hora, num bar do Bairro Alto em Lisboa. O argelino, com quem algumas vezes falara, aproximou-se numa conversa mais aberta e perguntou-lhe, entre copos, se conhecia alguém que podia voar sem medo. Jonas conhecia muita gente, mas ninguém que ele quisesse lançar assim, sem estados de alma, para um abismo. Não conhecia quem não quisesse proteger. Além disso, andava desligado de tudo. O desemprego fechara-lhe portas no fim do Verão. Uma luz abria-se-lhe agora inesperadamente. Ele próprio iria.
Sabia de histórias de amigos ou conhecidos que tinham passado, sem “cair”. E de outros, recrutados para serem correios — uma, duas ou três vezes — até se sentirem intocáveis e fazerem disso um modo de vida. Até serem presos.
Com ele, seria diferente. Seria uma vez sem exemplo. Os 9 mil euros prometidos eram muito mais do que aquilo com que alguma vez tinha sonhado. O ofício de ajudante de pastelaria, a que se dedicou desde os 15 anos, para sustentar o pai ex-toxicodependente, nunca cobriu mais do que renda e contas da casa onde cresceu em Talaíde, concelho de Oeiras, além das despesas do passe, refeições, medicamentos. Com 22 anos, podia enfim ter ambição.
Junto aos barcos no Cais do Sodré, entregou o Bilhete de Identidade ao argelino da véspera. Nos dias seguintes, recebeu de outros, sucessivamente, o bilhete de avião, um resumo da viagem, mil euros para despesas e um telemóvel, numa cadeia de contactos que lhe surgiam sem nome, quase sem rosto. O único que julgava conhecer — o recrutador do Bairro Alto — desapareceu da mesma forma que desaparecera dois anos antes quando Jonas o viu aliciar um amigo para trazer heroína da Turquia. Tudo, então, tinha corrido bem.
Tudo agora correria da mesma forma tranquila, disse-lhe o vendedor de sonhos, sempre de passagem, portador “de dois ou três passaportes” e de “um ou dois telemóveis” que mais tarde, por magia, se apagam, diz Jonas.
Jonas seria dono de um único passaporte. Teria apenas de criar, para si, uma história e acreditar nela, estar confiante, não vacilar, seguir as instruções escritas em mensagens em código ou vindas de vozes que não conhecia.
No Brasil seria apenas o tempo de deixar a sua mala e trazer de volta um pouco mais de um quilo de cocaína repartido em pequenas doses entre uma bagagem de cabine e um porta-documentos. Cumpriria as partes. O todo jamais lhe faria sentido. Valia a palavra de recrutador. Como o argelino do Bairro Alto. Como Flávio.
No fundo, nunca sabemos para quem estamos a trabalhar”, diz Flávio. Ele próprio já passou droga muitas vezes, ocultada na mala ou colada ao corpo, de carro ou de avião. Foi até Marrocos, Espanha, França, Bélgica, Irlanda, Turquia. “Este mundo é o que eu chamo o mundo dos intermediários. O principal é haver confiança.”
Começou com 20 anos. Agora, com 38 anos, alicia outros, de várias idades, a fazê-lo. “Os aliciadores são as pessoas que foram correios mas não têm coragem de o voltar a ser.”
Num passeio de Alcântara, aponta para a esquina do bairro, onde, durante um ano, como “vigia”, dava o alerta, sempre que lá de cima avistava o carro da polícia a ganhar a encosta. Umas horas rendiam-lhe 80 euros por dia. “É incrível”, exclama, como nunca foi preso. Cumpriu e cumpre medidas, responde em vários processos em tribunal, que correm em simultâneo e sobre os quais evita falar.
Olha de um lado e de outro, enquanto caminha, atento a quem passa. Reacende o charro que não lhe sai das mãos como um cigarro que deixa apagar. Com a face e os braços riscados com cicatrizes, o tom é de quem vive totalmente inserido nos esquemas do tráfico, mas ao mesmo tempo está prestes a deixá-los. Descreve inquieto, por diferentes e contraditórias formas, este modo de vida que não se larga facilmente. Talvez um dia, planeia. Para isso, teria de sair de Portugal, recomeçar do zero, fugir aos bairros onde o conhecem demasiado bem. Por agora, mantém um pé neste mundo, sem nunca correr os riscos dos que o fazem pela primeira, segunda ou terceira vez.
Como Jonas, que seguiu viagem pela primeira vez. No dia 22 de Novembro, da Gare do Oriente, em Lisboa, partiu de comboio para Bilbau, para aí apanhar o avião rumo a Natal, no Brasil.
Lisboa seria apenas uma escala na ida e no regresso, para baralhar pistas na mira dos investigadores dos crimes de tráfico de droga no Aeroporto da Portela. É esta a porta de entrada por excelência, para quem vem de África ou da América Latina para a Europa. E a afluência de correios de droga é um fenómeno em crescimento.
O número total de correios de droga detidos em Portugal provenientes de voos internacionais triplicou desde 2000, ano em que 63 pessoas foram detidas; 196 pessoas foram detidas pelas mesmas razões em 2013, de acordo com as estatísticas da Polícia Judiciária (PJ). Ao longo desses anos, o primeiro salto deu-se entre 2000 e 2002, quando o total desses casos mais do que duplicou (passando de 63 para 132). O recorde foi atingido em 2006, com 232 detenções de correios de droga provenientes de voos internacionais, nos quais a PJ tem registada a apreensão de mais de 849 quilos de cocaína.
Neste universo, o papel dos portugueses ganhou expressão nos últimos dez anos. Em 2000, sete correios de droga portugueses foram detidos, mas em 2004 já foram 18. Esse número aumentou todos os anos até 2010, quando 76 portugueses foram detidos nessas circunstâncias. Desde então, o número teve uma ligeira descida, mas manteve-se sempre muito acima dos valores de há uma década, com 45 em 2011, 53 em 2012 e 49 em 2013 — quase um português por semana.
“Existe uma maior disponibilidade das pessoas para serem correios” e “mais recrutadores”, confirma Rui Sousa, inspector-chefe da Unidade Nacional de Combate ao Tráfico de Estupefacientes da PJ, a partir da sua experiência no terreno nos últimos três ou quatro anos. Antes, os correios eram recrutados entre os toxicodependentes ou entre pessoas totalmente integradas no meio da droga. Hoje, muitos são empurrados para essa actividade pelas dificuldades económicas ou pela tentação do dinheiro fácil.
“Muito mais pessoas estão a ser aliciadas. Pessoas que não sabem o que fazer à vida. Passam e vão de novo, porque querem sempre mais. Pessoas casadas, com filhos. Mães desesperadas porque estão desempregadas e têm o filho doente”, descreve Jonas. “Ou gente como eu, sem nenhuma ideia de futuro.”
Para ele, seria apenas o tempo de receber a encomenda e de a trazer. No regresso, tudo mudaria. Poderia ser como os outros, viver sem sufocos, substituir a pequenina televisão na casa do pai por uma grande e boa, comprar um telemóvel “como deve ser”, uma consola e tudo aquilo que “um rapaz desta idade espera ter”.
No Brasil, seria recebido por uns colombianos, que lhe entregariam a droga, numa grande casa de um bairro da periferia de Manaus. “Era uma casa onde se fica de passagem, daquelas que se alugam de mês a mês e depois se deixam”, descreve. “Levaram-me a conhecer Manaus. Saíamos à noite, passeávamos, como se eu fosse um turista.”
Já eram quase amigos quando, ao 10.º dia, lhe fizeram a mala e o saco que traria ao ombro. Em várias poses, com a bagagem aberta, a droga escondida ou a descoberto, foi fotografado, sem perceber as razões, mas acreditando que as fotografias seriam para garantir, do lado de cá, que ia seguir viagem. “Acho que eles queriam mandá-las para aqui ou para Espanha, para quem pagou ver que eu ia mesmo arrancar com a droga.” A pessoa que a ia receber em Espanha já tinha pago a encomenda. “É uma regra”, diz Jonas.
No regresso, ficaria de novo uns dias em Natal, depois de uma escala em São Paulo. De Natal, já no voo TP 06, da companhia aérea portuguesa TAP, pararia numa escala de nove horas em Lisboa, antes da entrega da encomenda em Bilbau, de onde regressaria de novo de comboio a Portugal.
Este era o plano, que Jonas foi conhecendo, passo a passo, de véspera, e não como um todo. Cada dia era um dia. E no dia em que partiu de Lisboa, ainda pensava que podia ingerir a droga como forma de não ser descoberto. “Era muito mais seguro”, convence-se. Assim teria preferido, diz, sem relevar os perigos dessa opção que, nalguns casos, acaba em morte — como aconteceu no mês passado com um cidadão moçambicano de 39 anos que vinha do Brasil e seguia para Moçambique. “Casos anteriores” são do conhecimento do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), que não esclarece quantos óbitos ocorreram nestas circunstâncias nos últimos anos.
Jonas não ingeriu. O destino final era Bilbau e o tempo de voo e de escalas demasiado longo para poder trazer a droga no organismo. O plano que valia não era o dele. Ele era apenas um peão a render muito dinheiro a traficantes que, através dos correios de droga, estendem a rede a vários países. E quando, no Aeroporto da Portela, os agentes da PJ lhe mostraram a mala já aberta — essa pequena bagagem que ele planeava levar consigo na cabine e seguiu para o porão porque o avião estava cheio — Jonas confessou.
Nessa manhã de 3 de Dezembro, reconheceu o tormento que pressentira no irmão, o único que sabia dos motivos da viagem, quando este lhe disse na véspera de ele partir: “Não faças isso, mano. Tu és maluco. Tu pensas que passas, mas vais ‘cair’.” Juntos tinham ido comprar sapatos novos e um fato à Zara. Assim trajado, como numa viagem de negócios, tudo lhe parecia possível.
À chegada ao Brasil, Jonas receberia telemóvel e cartão novos. Num hotel de Natal, aguardaria o tempo que fosse preciso por uma mensagem: cinco dias. A entrega seria afinal em Manaus. Depois de recebida a mensagem, um colombiano estaria, e estava, no dia seguinte no átrio das chegadas no aeroporto desta cidade, erguendo um pequeno cartaz com o nome de Jonas como quem procura os inscritos para uma excursão ou evento internacional.
Em Bilbau, no regresso, outro intermediário estaria à sua espera, de novo com o nome do português apontado ao alto num pequeno cartaz. Se um inspector da PJ o tivesse seguido, sem ele saber, em todo o percurso até Espanha, teria visto quem no aeroporto procurava, insuspeito, um passageiro de nome Jonas.
“Não me seguiram para ver com quem eu me relacionava. Assim, nunca mais saberão quem são os donos da droga. Nem eu sei”, diz Jonas. Segui-lo seria impensável, explica uma fonte da PJ, porque isso seria colocar um cidadão português numa situação “moralmente e juridicamente complicada” de ser detido e julgado num outro país: Espanha.
Em Lisboa, a PJ ficou só com os telemóveis, já sem os cartões que Jonas engoliu na casa de banho para não deixar pistas ou a ideia de estar a denunciar alguém por temer represálias sobre a sua família. “A PJ não quis saber do computador, nem viu se tinha alguma conversa, algum contacto. É estranho”, diz Jonas.
Preso desde Dezembro no Estabelecimento Prisional de Lisboa (EPL), tem tempo para pensar em tudo isto e achar que as autoridades policiais se contentam com a detenção dos correios sem tentarem chegar aos traficantes. “A PJ só apanha os fracos, que somos nós”, lamenta.
Outra visão tem a mesma fonte da PJ: “Sempre que podemos, neste tipo de casos em concreto, fazemos a recolha do máximo de informação possível, para tentar comparar casos no futuro e extrairmos dali alguma informação para chegar a terceiros, aos responsáveis ou ao recrutador”. Além disso, acrescenta, um exame aos computadores, nestes casos, só é pedido, “quando temos a certeza que ele é essencial ou que [o computador] contém alguma prova que não seria obtida de outra forma”.
No topo ou na base da pirâmide, a condenação a penas entre quatro e 12 anos, por tráfico de estupefacientes, está prevista no artigo 21.º (do Decreto-Lei 15/93), mas este não distingue entre os vários papéis de quem é referenciado por “produzir, fabricar, vender, distribuir, importar ou fizer transitar [entre outros]” a droga. “Quem enche as prisões são os correios, não são os traficantes”, diz Jonas.
O seu advogado, João Guimarães Neto, encontra uma “disparidade de tratamento”. E aponta um exemplo: os oito portugueses acusados em 2007 de pertencerem a uma rede de tráfico de droga do México não estão presos. São acusados pelos crimes de tráfico e tráfico agravado, pelo transporte de três toneladas de cocaína escondida em mais de 700 caixas de polvos num contentor que chegou a Matosinhos, e aguardam o julgamento fora da prisão. Já lá vão sete anos e a acusação alega que a célula portuguesa, criada em 2006, estendeu ramificações do negócio a vários pontos do país.
Na prisão, Jonas tem todo o tempo para rever e reconstituir cada um dos passos da sua viagem. E, de cada vez, esbarra na parede de enigmas que ficam por desvendar. Como a sua própria detenção em Lisboa depois de ter completado com êxito o percurso pelas cidades do Brasil.
Acredita, como o seu advogado, que houve uma denúncia, para distrair e ocupar os agentes da segurança no aeroporto, e para outros poderem passar com cargas maiores sem ninguém sequer suspeitar, enquanto ele era revistado, e depois levado para o estabelecimento prisional da PJ.
“Tem que ver com o próprio sistema de correios de droga”, sustenta o advogado João Guimarães Neto. E imagina: “Eu, enquanto barão, que transporto uma média de 500 quilos por ano para um país ou através de um país, tenho de preparar o terreno, dar umas medalhas à polícia desse país. E depois ter os meus canais de distribuição.”
No processo consta que “a polícia obteve informação”. E esta só se obtém de duas maneiras: por denúncia ou por agente infiltrado, esclarece Guimarães Neto. “Nas situações de correios de droga, o mais comum é essa informação ser obtida por denúncia.”
Jonas sabe de quatro ou cinco portugueses, do mesmo grupo de amigos e conhecidos, que ficaram em prisões de Espanha e França, outros dois ou três que estão presos em Portugal, onde também estão muitos estrangeiros: “Brasileiros, bolivianos, paraguaios, venezuelanos, todos apanhados com droga.” E portugueses. “Amigos, com a minha idade, mais novos ou mais velhos. Raparigas de 23 ou 24 anos.”
Estão a cumprir penas por aquilo que ele também acabou por fazer e que, entre companheiros de vidas sem rumo, se estará a tornar quase banal. “Toda a gente que vai quer tentar de novo. E tenta sempre, até cair”, diz Jonas.
“Nos últimos três anos, encontro este denominador comum. Vejo estes jovens sem quaisquer perspectivas, desintegrados da sociedade”, expõe o advogado Guimarães Neto. “A vida deles é preenchida com um esquema de aventura como aquele que eles vivem. Vivem em casa dos pais. O mundo deles é o Bairro Alto. Esta faixa de jovens é muito grande, o que aumenta o universo de recrutamento. E todos os recrutadores têm o plano fantástico, têm a solução certa e a história de sucesso para contar.”
Os detidos estrangeiros, desde 2012, são cada vez mais jovens, mostram as estatísticas do SEF, que controla a entrada de 38 mil passageiros que diariamente chegam de voos de países não Schengen.
Em 2012, entre as 21 pessoas interceptadas pelo SEF e depois detidas pela PJ, oito tinham entre 31 e 35 anos, e essa era a faixa de idades mais representada. No ano passado, a faixa dos 26 aos 30 anos passou a dominar, com sete pessoas; em quatro outros casos, os detidos tinham menos de 25 anos. Este ano, as idades continuaram a baixar. Com seis casos até Agosto, os jovens entre os 21 e os 25 anos passaram a ser os mais representados na lista das pessoas detectadas pelo SEF. A juntar a estes dados, uma jovem brasileira de 20 anos foi detida em Setembro no Aeroporto de Lisboa com mais de um quilo de cocaína.
Com Jonas, seria diferente. O seu plano era viver com a namorada, Cátia. O seu sonho era ser quem não era, ter o que não tinha, viver uma outra vida.
No dia 4 de Dezembro, Jonas foi presente a tribunal, onde lhe foi decretada a prisão preventiva e, em Maio, um colectivo de juízes condenou-o a quatro anos e nove meses de prisão pela autoria material de um crime de tráfico de estupefacientes.
“Eu, aqui na prisão, não posso prender-te”, diz agora a Cátia. Ela, mais nova que ele, não se solta, espera e promete. Quando ele lhe falou que tinha de viajar para França, Cátia adivinhou que era droga aquilo que o levava a partir e não uma proposta de um trabalho feita por um amigo. Ela já vira outros partirem, serem denunciados, presos e não voltarem. E, mesmo quando passavam sem cair, ficavam referenciados pelas redes, das quais dificilmente se libertavam.
Sentado numa sala do Estabelecimento Prisional de Lisboa, onde cumpre o 10.º mês de uma pena de 57 meses, Jonas fala quase sem pausas durante mais de duas horas, e baixa os olhos pela primeira vez. “Como pode uma pessoa esperar assim?” Viu Cátia, dois dias antes, na visita. Mas a lembrança fixa-se naquela noite de Novembro, quando recebeu a mensagem de que devia seguir para o aeroporto, e ela se agarrou a ele, em lágrimas, e lhe suplicou: “Não vás.”
Para ele, seria tão simples como ir e voltar. Estar de volta muito antes do Natal, festejar os 23 anos em casa e não na prisão, em Fevereiro. E nunca deixá-la assim à espera. Agora, ele não lhe pede “nada”. Agora, ela é a mulher de um recluso, a quem leva cestos de comida caseira e sacos de roupa lavada, sempre que pode, nas visitas à prisão, onde o encontra cada dia mais magro.
Olhando outros casos em volta, no EPL, ou de pessoas que conhece noutras cadeias, Jonas nunca acreditou ver aceite a suspensão de execução da pena, como foi pedido em recurso pelo seu advogado e recusado, agora em Setembro, pelo Tribunal da Relação de Lisboa. Nunca é dada uma segunda oportunidade a quem cai neste mundo, parece dizer. “A droga foi apanhada comigo. O artigo [21.º] não muda. É 21 e é 21 até ao fim.”
Fixou o número como fixou a letra E da ala dos preventivos onde está desde Dezembro, ou o olhar dos polícias federais, à passagem da mala com rodinhas e do saco ao ombro, em Manaus, em São Paulo, em Natal. “No aeroporto de Manaus, passei, olharam, não disseram nada. De novo na escala em Campinas, passei as malas sem problemas. Em Natal, a mesma coisa. Não diziam nada. Olhavam, deixavam passar e davam as boas-vindas.”
Antes de regressar, num quarto de hotel em Natal, deu-lhe alento pensar que nenhum entrave ou pergunta tinham surgido quando passara, dois dias antes, os 1,4 quilos de cocaína repartidos entre uma pequena mala de viagem e um saco a tiracolo no raio-X de dois aeroportos — São Paulo, onde fez escala, e Manaus, de onde partiu.
Mas era um alento difuso. Como aquele que perpassa a permanente dúvida na expressão das personagens de Maria Cheia de Graça (2004), filme de Joshua Marston que conta a história de María, aliciada com duas amigas, para serem “mulas” e levarem droga no corpo para os Estados Unidos.
Se a noite desagrava e dilui a sombra de ameaças, também amplia a aflição de quem pressente e transporta a desgraça: “O voo era à 1h00 da manhã”, conta Jonas. “Acordei às 23h00 a pensar ‘não vou, vão olhar para mim, vão fazer-me perguntas, chamar-me’. Pensei perder o avião, mandar aquilo fora, depois ir à embaixada pedir protecção. Mas já estava em cima da hora e pensei ‘vou arriscar’. Tinha combinado com o taxista do hotel. Ele ligou-me para o quarto. Vesti-me à pressa e fui.”
No acórdão de 27 de Maio, o colectivo de juízes considerou que Jonas “actuou dolosamente”, de “modo plenamente voluntário” e que fora “sua vontade agir como agiu”. E não encontrou “quaisquer circunstâncias” para justificar a sua acção ou que “excluam a sua culpa”.
Os juízes descrevem Portugal como “uma apetecível e muito explorada porta de entrada de drogas no continente europeu” através de pessoas que se prestam a assumir o papel de correios de droga, “um papel tão comum e cada vez mais usual no nosso país”. E defendem como “urgente a necessidade de que, em resposta a essa circunstância, o sistema legal e penal português saiba reagir de forma particularmente incisiva”. Assim justificam a “severidade” da sentença.
Também concluem que “as exigências” de “salvaguarda da segurança” da comunidade “impõem” a decisão de não conceder uma suspensão da execução da pena, sobrepondo-se essas exigências à perspectiva favorável do comportamento futuro do arguido. Era essa a perspectiva realçada pela defesa, sendo Jonas uma pessoa jovem, sem antecedentes criminais, inserida social e profissionalmente e a sustentar um pai doente oncológico, e ex-toxicodependente.
Este retrato passado e presente de Jonas não dissuadiu os juízes de privilegiarem “as exigências de prevenção geral e especial”, descrevendo-as como urgentes perante a constatação do “infeliz papel de liderança” que Portugal “tem vindo a assumir no que respeita à prática de actos” de transporte de droga.
“O que eles invocam são as razões de alarme social, o facto de Portugal estar referenciado como porta de entrada de cocaína na Europa e de cada vez mais ser utilizada essa plataforma”, interpreta o advogado João Guimarães Neto, apontando “o exemplo para fora” que os juízes sentiram necessidade de dar, independentemente de quem tinham à sua frente. “Foi uma mensagem cá para fora, para os amigos [do Jonas], para a geração [do Jonas], dos que como ele bebem copos no Bairro Alto: ‘Se vocês se aventurarem, será este o resultado’.” E conclui: na decisão judicial, “o securitário sobrepôs-se ao humano.”
O advogado, que defendeu cinco casos destes nos últimos três anos, concorda que este é um fenómeno social em expansão a que é preciso “pôr um travão”. “Mas há casos e casos e há pessoas que são recuperáveis e que estão ali pela primeira vez”, considera. Sempre sentiu Jonas como “uma pessoa fora do sistema criminal”, mas que, dentro da cadeia, continuará “debaixo de olho” dos traficantes.
“O recrutamento vai até dentro das prisões”, aponta Guimarães Neto. “A rede fecha-se. O investimento feito nele não está perdido” para as redes criminosas. Em contraponto, a suspensão da pena ter-lhe-ia dado a oportunidade de se reinserir e repensar a vida, defende o advogado. Quem cumpre pena, acrescenta, tem as mesmas ou até mais probabilidades de reincidir.
Tanto mais, sublinha o advogado, que Jonas “tem ao lado dele indivíduos com ‘cadastrões’, pessoas com outro tipo de crimes e de idades, o que dificulta ainda mais a sua hipótese de regeneração”.
Jonas vê a prisão como “uma escola”. “Todos os dias, há porrada, facada. É duro.” Cresceu num bairro problemático, mas nunca viu nada assim. “Quem entra aqui fica embruxado para o resto da vida. Ninguém, lá fora, vai aceitar dar-me trabalho. Não querem saber se foi droga ou outra coisa, nem quais as razões”, salienta.
“Se eu indicar alguém, já sou recrutador. Já sou um ídolo. Se eu quisesse arranjar, tinha arranjado mas se essa pessoa caísse, eu nunca me perdoaria.”
Sem os estados de alma de Jonas, Flávio descreve as vantagens de recrutar “correios” ou “mulas” e ganhar mil ou 2 mil euros, mas nunca arriscar a pele. Quando tinha 17 anos, já era ele próprio aliciado para quando fizesse os 18 e pudesse viajar sozinho sem dar nas vistas. Por que não fazê-lo com os outros?
E tem-no feito cada vez mais, sempre que encontra a pessoa certa. “Vou falar-lhe no plano, ver como o olho brilha, dizer-lhe que no aeroporto houve instruções para deixarem passar a bagagem, que foram pagos. Mas às vezes não está nada combinado, é tudo ‘tanga’.”
Assim, à memória surge-lhe um caso muito recente: uma rapariga de 26 anos, presa em Tires, aliciada por ele e depois denunciada.
“É preciso ler o pensamento das pessoas, perceber as fraquezas. Saber onde pode ou não quebrar e, a partir daí, fazer um jogo psicológico. Por exemplo, lembrar quem é a sobrinha ou a mana ‘querida’ para levar a pessoa a sentir que não pode desistir a meio.”
Com a experiência e os anos, Flávio ganhou estatuto na pirâmide de papéis a desempenhar: correio de droga, recrutador, intermediário, controlador. “Não podemos cruzar-nos de maneira nenhuma. Não pode haver contacto. E nunca se recruta no bairro, porque se a pessoa for apanhada no aeroporto, a PJ, na sua investigação, pode ir lá dar.”
As redes devem ter o mínimo de teias entre si, explica, entre quem marca os encontros, renova os passaportes que acumularam demasiados carimbos, entre quem alicia ou vigia, no aeroporto ou já dentro do avião, para ver se quem transporta está calmo ou tomado pelo pânico. Esse é o controlador. Mas também há aquele que dá a cara para ir comprar o bilhete, o que vai levar o correio ao aeroporto. E aqueles que, noutro patamar, definem as rotas.
“As organizações criminosas tentam retirar os correios de droga dos percursos óbvios”, diz Fernando Silva, director da Direcção de Fronteiras de Lisboa. Os percursos óbvios são em grande parte definidos pela frequente rota que liga Portugal e Brasil. De várias cidades brasileiras, chegam a Lisboa 75 voos por semana (mais seis ao Porto) — incluindo as duas novas rotas da TAP, iniciadas em Junho, para Manaus e Belém.
Desde 2009, 79 dos 81 cidadãos que nos últimos cinco anos foram interceptados pelo SEF e entregues depois à PJ, até Agosto de 2014, vinham do Brasil: todos menos dois, cuja origem era Caracas, Venezuela, em 2011. Já fora das estatísticas até Agosto, dois correios estrangeiros de 49 e 31 anos, vindos também de Caracas, foram detidos com 10,6 quilos e 8,3 quilos de cocaína, na semana passada.
As estatísticas da Direcção-Geral dos Serviços Prisionais não distinguem quem, entre os condenados por tráfico, é ou não correio de droga, mas mostram que o número total aumentou. Se, no final de 2009, nas prisões portuguesas estavam 1814 reclusos condenados por tráfico de estupefacientes, no fim de 2013, esse total tinha subido para 2026.
Entre estes, aumentou muito o número de mulheres portuguesas. Os estrangeiros continuam a representar, como sempre ao longo destes cinco anos, cerca de um terço do total de reclusos condenados por tráfico. Para eles, sem residência em Portugal, não se apresentam alternativas para outro tipo de medida — antes e depois do julgamento — além da prisão.
Para Jonas, essa também foi a decisão. “Passo os dias a fumar haxixe. Quero estar calmo à espera da minha liberdade. Ela vai chegar. Eles não vão parar o tempo.”
Na sua cabeça, está na “pior prisão da Europa”, o Estabelecimento Prisional de Lisboa de onde tenta ser transferido, agora que o seu processo transitou em julgado. A mesma prisão no centro da cidade, com as mesmas três salas para visitas, onde Jonas, ainda miúdo, vinha ver o pai, preso por roubar para consumir heroína, enquanto ele crescia em casa dos tios paternos, depois de a mãe decidir partir para Espanha.
Numa inversão de papéis, é o pai quem hoje visita o filho. Tem cancro e não pode ficar sozinho, mas cumpre, sem falhas, as três visitas autorizadas por semana. Vive agora com o filho mais velho. E espera sobreviver para um dia ver Jonas voltar para casa.
Jonas, Cátia e Flávio são nomes fictícios