Como morreu D. Maria Afonso?
Naquela noite chuvosa foi a marmelada branca que nos levou até ao Mosteiro de Odivelas. Passaram-se séculos desde que as freiras deste mosteiro, chamado de São Dinis e São Bernardo, criaram este doce, hábil combinação do ponto certo da cozedura dos marmelos e do delicado ponto do açúcar, arte conseguida por quem tinha, mais do que tudo, tempo. E nessa noite tínhamos sido convidados a conhecer as muitas formas de usar a marmelada branca em diferentes pratos (uma tarefa que coube ao chef Vítor Claro, para isso desafiado pelo projecto Endògenos).
Desde sempre a marmelada era vendida em pequenos cubos embrulhados em papel e, reza a história, com mais ou menos lenda misturada, que eram muitos os nobres que ali acorriam atraídos pela doçura da marmelada branca — e das freiras que a faziam. A mais célebre das histórias de amor passadas no mosteiro foi, certamente, a de D. João V e da Madre Paula, que, juntos, tiveram três filhos bastardos embora mais tarde reconhecidos pelo rei — D. António, D. Gaspar e D. José, os chamados Meninos da Palhavã por terem vivido no palacete junto à Praça de Espanha que é hoje a Embaixada de Espanha.
Mas o mosteiro — que no último século viveu uma existência bem mais discreta como Instituto de Odivelas, colégio interno para filhas de militares (hoje esse critério alargou-se e o instituto recebe também outras alunas) — esteve muito tempo de portas fechadas aos visitantes exteriores e por isso as muitas histórias e segredos que guarda foram caindo no esquecimento. Só desde há poucos anos, e graças a um protocolo com o município, é que o espaço pode ser novamente visitado.
Foi assim que, depois de percorrer as ruas de Odivelas, me vi, naquela noite, no Largo de D. Dinis, em frente da estátua da Rainha Santa Isabel, mulher do rei D. Dinis, fundador do mosteiro em 1295, com o seu longo manto coberto de rosas. A toda a volta estavam já montadas barraquinhas de madeira e pano para a feira setecentista que iria acontecer nos dias seguintes celebrando o I Festival da Marmelada Branca de Odivelas.
Desastradamente às voltas com o GPS e com a chuva, cheguei atrasada para a visita e fui encontrar os outros convidados já abrigados na cozinha velha, a beber um gin com marmelada, por entre azulejos antigos e tachos de cobre. Mas as guias da câmara, vendo o meu desalento, levaram-me ainda a conhecer o claustro pelo qual passeavam, de farda, algumas das alunas do instituto que nos olhavam com curiosidade, e pela igreja, onde se encontra o túmulo de D. Dinis.
O terramoto de 1755 destruiu grande parte do mosteiro e da igreja, e o túmulo, que na altura se encontrava numa zona central, ficou muito danificado. A recuperação feita posteriormente foi desastrosa e as marcas dessas feridas continuam visíveis na pedra, embora não perturbem o rosto seráfico de D. Dinis.
Mais inquietante é o pequeno túmulo na capela do outro lado do altar-mor. A estátua jacente mostra uma figura jovem, provavelmente de mulher, cabelos longos, túnica cobrindo todo o corpo até aos pés. Supõe-se que aqui esteja o corpo de uma das filhas bastardas de D. Dinis, D. Maria Afonso, que viveu no mosteiro e aqui terá morrido jovem, possivelmente com 18 anos.
É uma figura misteriosa, da qual se sabe pouco. Dos sete filhos bastardos de D. Dinis, duas eram mulheres, e ambas receberam o nome de Maria Afonso. A que se supõe que esteja neste túmulo é a mais nova, nascida em 1302, e que seria filha de Branca Lourenço de Valadares, tia de D. Inês de Castro. Mas o que a torna misteriosa é precisamente a mensagem deixada no seu túmulo: uma das imagens em pedra que suporta a arca mostra uma figura masculina, já sem cabeça, sobre uma outra figura que parece ser uma criança, revelando uma expressão de grande aflição.
Se observarmos mais atentamente o conjunto, reparamos que o braço direito da figura masculina segura uma espada que, aparentemente está a enterrar no corpo da criança. Contará a escultura a morte violenta de D. Maria Afonso? Não há mais nada que nos ajude a saber.
A receita da marmelada branca chegou até nós pela mão da última freira que habitou o convento — D. Carolina Augusta de Castro e Silva, que morreu em 1909 —, assim como chegaram as muitas histórias dos amores, ou os relatos dos “outeiros”, concursos de poesia no pátio do mosteiro com motes lançados pelas freiras, nos quais participava, entre muitos outros, Almeida Garrett. De tudo isso, e até de uma “lista negra” de freiras condenadas por “delitos amorosos” no tempo de D. João V, chegaram-nos notícias. Só não chegaram do mistério que esconde a discreta escultura sob o túmulo de D. Maria Afonso. Dessa história só temos isto: um corpo sobre o outro, uma espada, um rosto aterrorizado.