Brasil no divã: “O brasileiro acha que tem o direito, o direito, o direito, nunca pensa que tem o dever, o dever, o dever”
"O Brasil é tão louco" que aceita não uma mas duas candidatas mulheres, mas recusa-se a discutir o aborto, diz o escritor e ex-deputado Marcelo Rubens Paiva.
Você poderia escolher e descrever um episódio desta campanha eleitoral como um sintoma que descreve o conflito como numa sessão de psicanálise?
O mais grave foram as questões comportamentais, as únicas bem demarcadas pelos candidatos mais de direita, mais conservadores e de alguns candidatos mais progressistas. O episódio mais chocante para mim foi o do Levy Fidelix quando falou que “aparelho excretor não é aparelho reprodutor” e terminou de um jeito que lembra um pouco os discursos fascistas e autoritários de que a “maioria não quer homossexual, portanto os homossexuais têm que obedecer e fazer um tratamento de preferência longe daqui”.
Foi um choque você ver como existem dois Brasis: um Brasil que você aparentemente acha que é um país libertino e para a frente, o país do futuro, do Carnaval, da alegria, do despojamento, da sexualidade resolvida em que três milhões desfilam na parada gay, o país em que uma vez por ano os homens se fantasiam de mulher e, por outro lado, o país do fundamentalismo religioso que não aceita o aborto, que não aceita o casamento gay, que seria este país da “maioria” do Levy Fidelix.
Eu acho que ficou bem delimitado o que realmente foi interessante nesta campanha. De resto me parece que a esquerda e a direita brasileira se confundem um pouco em relação às propostas políticas. Não há muita diferença. Não é nítido que um grupo defenda a intervenção do Estado e outro grupo defenda o liberalismo, a retirada do Estado do mercado. No Governo do PT, os bancos tiveram um lucro fantástico. Então os programas dos três grandes candidatos dos partidos de esquerda, do PSDB, PSB e PT, se confundem muito, são muito parecidos.
Acho que o PSDB pode ser mais neoliberal, até defende uma diminuição do Estado mas na prática não difere tanto dos outros. A corrupção é igual em todos, a corrupção no país é endémica, as questões de violência urbana… O PSDB está no governo de SP há 30 anos e este é o estado mais violento da nação. O que poderia ser um destaque era a Marina ter um projecto de apoio às questões gay e aborto e ela não teve, ela retirou do programa porque foi pressionada pelos grupos evangélicos.
Não se falou de aborto, não se falou de questões de drogas, que os nossos vizinhos – o Uruguai e a Argentina – estão comprando uma briga grande até com a comunidade internacional, os EUA também liberando maconha, alguns estados para uso medicinal, outros para o consumo. Esta questão da maconha é crucial para o Brasil que é produtor de maconha, é um país que enfrenta muitos problemas com drogas. Aborto, maconha e homossexuais foram temas abordados pelos partidos pequenos de uma forma mais transparente. O pastor Everaldo e este Fidelix absolutamente contra, execrando, e o PV do Eduardo Jorge e o PSOL da Luciana Genro absolutamente a favor do aborto, da liberalização da maconha e do casamento gay.
Estes dois Brasis, o que revelam do Brasil de hoje?
Que é um país extremamente conservador. O Brasil é tão louco que é um país que aceita não uma mas duas candidatas mulheres, o que para os Estados Unidos é impensável. No caso do Brasil, inclusive duas solteironas (risos). Ninguém questiona. É indiferente. Não precisa ter aquele projecto de candidato americano: uma mulher, dois filhos, um cachorro. Aceita-se uma mulher solteira ou separada ou sabe-se lá, não importa qual é o estado civil, mas as questões referentes ao aborto, que são questões que demonstram uma sociedade progressista, laica, estas questões são ainda tabu, são rechaçadas pela opinião pública.
E quando você pensa nas atitudes da Marina ou da Dilma nesta primeira volta? O que o discurso de uma ou de outra revela?
A mais simbólica para mim foi a retirada de posição da Marina. Foi ali que ela começou a perder os votos inicialmente da classe média, do formador de opinião que se assustou um pouco de que como ela não estava certa nem segura do seu programa.
Foi também o que a Dilma fez com aborto na eleição passada….
Sim. A impressão que deu é de que é mais uma. É só ela estar na frente das pesquisas que ela começa a modificar seu plano de governo. Começou a fazer encontros com agro-pecuaristas, enfim é uma pessoa que você percebe que começou a moldar a sua candidatura de acordo com as necessidades do mercado, “do consumidor”. Uma candidata que começou a campanha com o discurso da nova política e, em uma semana, já estava mudando.
E foi isso que fez ela descer nas sondagens?
Foi o começo, acho que foi uma das causas. Mostrou uma personagem fraca, uma personagem com uma proposta demagógica. Já a Dilma… O Brasil está caminhando para o desastre económico. Nós estamos a um passo da recessão. Todo mundo sabe disto. O mercado sabe disto. Toda vez que ela sobe nas pesquisas, a Bolsa cai. Então aí espera-se que se ela ganhar, num segundo mandato, ela possa fazer aquilo que não fez no primeiro mandato: liberar os preços que estão congelados, dos combustíveis, electricidade; diminuir os gastos públicos, a cartilha do FMI, e trocar o Guido Mantega (ministro da Economia) que é um desastre, que ninguém entende até hoje porque ele continua no poder.
Mas, por outro lado, se ela for eleita por uma boa margem de votos, ela vai se sentir no direito de manter a sua equipa económica. Só que têm coisas que não estão funcionando, funcionaram durante um tempo… Este princípio do pleno emprego que nem os economistas entendem como é que está acontecendo no Brasil, como foi possível esta criação do pleno emprego? Nunca a taxa de desemprego foi tão baixa na História. Não se explica porque… a gente está exportando pouco, nosso défice comercial está alto, porque as indústrias estão demitindo, me parece que são os serviços que estão empregando e o aumento do poder de compra das famílias, algo que a Dilma percebeu que é uma forma de manter a popularidade apesar de economicamente não estarmos bem como outros países em desenvolvimento, como os países do BRIC por exemplo.
Os psicanalistas dizem que o normal é ter neuroses. Qual é a grande neurose do Brasil?
Uma grande neurose do brasileiro é achar que ele não é parte do Estado. Você vê o brasileiro falar do governo como se fosse uma entidade distante e esquece que o governo foi ele mesmo que elegeu. É um pouco o fruto de muitos anos de regime autoritário, monárquico, de democracias que não são representativas, que faz com que o brasileiro não se sinta dono do poder. Eu morei em outros países e lá é diferente. Na França e nos Estados Unidos, o cidadão se sente o dono do poder. Aqui se reclama de mais, o governo, cadê o governo? As pessoas não tem muita noção. Você vê o taxista reclamando que a prefeitura (câmara) não policia, mas na verdade o policiamento é uma função estadual e não municipal.
Há uma cerca confusão das divisões de poder, o que o Estado, a federação, a União, o município fazem, o papel de cada um na educação, no policiamento, nas estradas, as pessoas se confundem muito. Não é à toa que o Geraldo Alckmin fez um péssimo governo e pode ser reeleito no primeiro turno [o governador foi de facto reeleito em São Paulo na primeira volta]. As pessoas não entendem muito bem o que aquele governador faz, não sabem que ele é o responsável pela polícia militar, que em SP aumentou o número de furtos e homicídios; o problema do caos da água no estado de São Paulo que é o único estado que está tendo este problema. Coloca-se a desculpa numa seca, pelo amor de Deus, quantas secas já tivemos na nossa História? É uma demonstração de falta de planeamento, de corrupção, de incompetência.
O brasileiro parece aquele cara que põe a culpa em tudo e ele não percebe que ele mesmo tem que arregaçar as mangas. Isso é muito grave. Por exemplo, eu vejo isto na rotina da rua. Você vê o teu vizinho reclamar que a árvore não foi podada mas ninguém tem a iniciativa de ir lá com uma tesoura e podar. Não se sentir parte do poder é um grande problema do Brasil. O brasileiro acha que tem o direito, o direito, o direito, nunca pensa que tem o dever, o dever, o dever. Por exemplo, ele tem o direito a ter o seu carro, a andar de carro na rua, mas ele nunca imagina que tem o dever de colaborar com o ar da cidade, deixar este carro também na garagem para não poluir mais. Ele tem o dever de não colocar a vida dos outros em risco, de dirigir mais prudentemente. Então ele tem o direito de polícia, mas também tem o dever de não sonegar imposto para este imposto ir para o pagamento das despesas do Estado. O brasileiro não tem muita noção de Estado-nação. Ele se sente à parte. Ele acha que existe o Estado e existe ele.
É mais fácil ficar com parte do problema do que buscar a solução….
O problema para o brasileiro não é ele. O problema para ele é o governo. Ele sempre acha que alguém tem que resolver por ele. Me lembra aquelas pessoas que acham que a culpa é sempre dos outros, nunca é delas. Todo mundo está errado, é um pouco de paranóia. Ele é que tem que começar a actuar e não esperar que alguém, um tal governo, um líder, um político… sempre se fala da generalização do político, “o político é tudo corrupto”, aí você vê os candidatos a deputado que estão na frente são exactamente os mesmos de sempre. Não se entendeu o que aconteceu em Junho de 2013 que todo mundo queria um novo país, a Dilma pode ser reeleita, o Alckmin vai ser reeleito, o Tiririca vai ser reeleito, o Maluf, os mesmos deputados, as mesmas pessoas.
Você estava falando em transformar, a cura na psicanálise é a transformação. Você acha que há chance de transformar o Brasil?
Pouco a pouco. O Brasil é realmente uma democracia muito jovem. A democracia brasileira começou de facto mesmo em 1990 com o Fernando Collor de Mello e mesmo assim já foi um pouco traumático porque o primeiro Presidente eleito foi o primeiro “ impeachado” na nossa História. Nós estamos em 2014, são só 24 anos de democracia plena com poderes independentes, um Supremo agindo contra o Congresso, contra a União.
Claro que muita coisa tem que ser feita. Mas se você pensar que o país teve 514 anos de História e só 24 anos de uma democracia realmente verdadeira. Porque mesmo a democracia de 1945 até 1964 era uma democracia entre aspas porque o partido comunista foi colocado na ilegalidade, havia censura, havia perseguição política, era uma democracia um pouco esquizofrénica. A partir dos anos 1990, aí sim foi uma democracia real, todos os partidos permitidos, todos os credos e cultos, liberdade de imprensa. A gente tem muito que aprender.
Você acha que o Brasil não vai sair deste conflito?
Sou céptico. Acho que não. Às vezes eu me surpreendo. A questão das ciclovias por exemplo em São Paulo. O paulista é o homem ligado ao carro. Ele é conservador, a indústria automobilística do Brasil é de São Paulo, tudo aqui foi feito para o carro, tudo foi planeado em função do carro. Constrói-se um bairro afastado com uma estrada, nunca com uma linha de metro ou trem. Aí a prefeitura resolveu fazer ciclovias. Tiraram os lugares onde as pessoas estacionavam os carros. Foi uma grande discussão. As pessoas revoltadas, editorial de jornal. Todo mundo metendo o pau até fazerem uma pesquisa e descobrirem que 80% da população é a favor. Aí até os jornais mudaram de opinião e começaram a escrever sobre as ciclovias com mais simpatia. Foi uma grande revolução. Isso vai mudar um pouco o jeito de ser do paulistano e do brasileiro num país que tem muito incentivo para comprar carro.
Então apesar do seu cepticismo, às vezes você se surpreende.
A ciclovia me surpreendeu. Um taxista estava reclamando muito e eu reparei que a ciclovia estava vazia e ele me disse que enchem à noite, que é quando as pessoas chegam a casa, pegam a bicicleta e andam pelo bairro para fazer exercício. Você acha isso fantástico numa cidade como São Paulo, em que não há áreas de lazer, há pouco espaço, não tem praia, não tem uma política que incentive opções de lazer público e de repente a ciclovia se tornou a área de lazer. Estas coisas surpreendem. E talvez o paulista comece a andar mais de bicicleta. Eu sou um pouco céptico, mas às vezes o Brasil surpreende.