A avenida da nossa adolescência

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João Catarino

Ando pelo território da minha adolescência. Podia jurar que consigo dizer a sequência de todas as lojas da Avenida de Roma, que era capaz de a percorrer de olhos fechados sem me enganar. Mas, de repente, assaltam-me dúvidas: será que aquela loja já fechou? Que de tanto passar por ela, um dia ela desapareceu, eu não reparei e continuo a vê-la onde sempre esteve? Pergunto à minha mãe, que ali vive. Ela também tem dúvidas. “Não foi aí que abriu um banco?” Pode ser. Há certamente uma Avenida de Roma que só existe na minha cabeça.Quando andava no Liceu Rainha D. Leonor, percorria a avenida todos os dias. Era o início dos anos 1980, os professores faltavam muito, e nós parávamos na Sul-América, uma mesa cheia de adolescentes a fazer barulho e a pedir apenas dois cafés. Ou então íamos comprar uma T-shirt muito barata às ciganas que vendiam na rua na Praça de Alvalade. Quando chegava o Carnaval, os liceus iam fechando. Nós, no D. Leonor, ficávamos à espera que viessem os do Padre António Vieira para irmos por ali abaixo “fechar o Filipa”. Ou seria ao contrário? Havia farinha e ovos — e, disso lembro-me bem, era muito difícil tirar o cheiro dos ovos do cabelo.

A minha mãe e o marido, o realizador de cinema Lauro António, viveram primeiro numa casa muito pequena, ao pé do liceu, e depois mudaram-se para o prédio do café Vavá, no cruzamento com a Av. Estados Unidos da América.

Da varanda, vê-se a avenida toda, a estender-se quase até à Praça de Londres. Ainda hoje o Lauro ali organiza as tertúlias Vavadiando, naquele que foi nos anos 60 o café de referência de uma geração de intelectuais, sobretudo os ligados ao cinema.

Da janela dessa casa, eu ouvia muitas vezes os Sétima Legião a ensaiar no terraço do prédio em frente — e recordo que nós, miúdos dos primeiros anos do liceu, olhávamos com admiração aqueles rapazes, de gabardinas e um britânico ar cool, que pareciam tão mais velhos do que nós.

Percorri tantas vezes a Avenida de Roma, com os amigos (marcávamos encontro na loja de discos Sinfonia para seguirmos juntos para o liceu, e aproveitávamos para ver as novidades na montra) ou com a minha avó (e então parávamos nas lojas de lãs, já perto da Praça de Londres) ou nas de pronto-a-vestir (e isso podia ser muito aborrecido, quando a minha avó se demorava, indecisa). Passávamos a loja dos cafés, sempre com o cheiro delicioso do café moído na hora — e também ela continua a existir, tal como a Sinfonia, ou a (muito) antiga Casa China, com os seus jarrões chineses e terrinas de porcelana na montra.

Foi na Avenida de Roma que abriu a segunda (a primeira foi em Alvalade) das revolucionárias lojas de roupa de Ana Salazar, a Maçã. Mais à frente fica a Livraria Barata, e lembro-me bem de quando era apenas um corredor com um longo balcão que cheirava a madeira, onde eu ia comprar os livros para a escola. E, do outro lado, o Cinema Roma (hoje Fórum Lisboa), discretamente recuado, tal como a piscina onde cheguei a ter aulas de natação.

Quando a minha mãe era pequena e os meus avós foram morar para Entrecampos, a Avenida de Roma era ainda um sítio “muito fora de mão” — uma espécie de cidade nova que nascia isolada do resto de Lisboa. Das traseiras da casa de Entrecampos, a minha mãe viu nascer o bairro de São Miguel, onde antes só existiam quintas. Depois, e porque surgiu a avenida que levava ao aeroporto, o espaço rural que separava essa zona da da Avenida de Roma, onde antes havia rebanhos de ovelhas, foi-se tecendo. Nascia aí a Avenida Estados Unidos da América.

Entretanto, as ligações estabeleciam-se também para o outro lado: há fotografias antigas que mostram o vazio que existia entre o Hospital Júlio de Matos e a Praça de Alvalade, um espaço de campo que foi também, a pouco e pouco, sendo preenchido por prédios. Quando eu comecei a percorrer a Avenida de Roma, no final dos anos 1970, os pedaços de cidade já se tinham unido.

Em A Arte de Morrer Longe, num belíssimo texto sobre a avenida, Mário de Carvalho fala das frontarias dos prédios, onde “pequenas figuras majestáticas contemplam o eterno, com a displicência cansada, como uma paródia pálida, entristecida do gesto de imperadores e cônsules de outros idos”.

Também olho para elas às vezes, quando levanto os olhos das montras das lojas e dos cafés. E, essas sim, se a memória não me falha, estão, majestosas mas discretíssimas, no sítio onde sempre me lembro de as ver — tanto nas tardes quentes de domingo em que a avenida parece esquecida por todos, como nos dias frios de Dezembro, em que anoitece mais cedo, há luzes de Natal, e o cheiro da loja de café fica mais tempo a pairar-nos na alma.

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