Este museu não podia ser desenhado por um arquitecto europeu
O novo edifício traz para a zona simbólica de Belém uma maneira de fazer arquitectura com sabor paulista. Elevado sobre colunas, celebra o chão da cidade.
Foram mais de dois anos de espera. Desde o início de 2013 que a grande nave está terminada. O seu destino é albergar a principal colecção de coches no mundo. Mas os tapumes permaneceram no lugar até há duas semanas, quando finalmente a Direcção-Geral do Património Cultural autorizou a sua remoção. O próprio arquitecto brasileiro desabafava em 2013, ao Jornal Arquitectos, órgão oficial da Ordem dos Arquitectos, ser “mais difícil retirar os tapumes do que iniciar a obra”. Hoje, finalmente livre o terreno de qualquer empecilho, percebe-se a ansiedade. A sua presença obstruía uma leitura mais justa do novo lugar e principalmente estorvava a urbanidade que o projecto desde o início prometia.
O projecto começou por ser desenhado em São Paulo em 2008. Para Paulo Mendes da Rocha, resumia-se “à ideia de transformar um lugar que em si já era belíssimo”. A equipa projectista incluía o colectivo paulista MMBB (Fernando de Mello e Franco, Marta Moreira e Milton Braga), o escritório português de Ricardo Bak Gordon, e o engenheiro Rui Furtado, responsável pelos cálculos estruturais de obras portuguesas significativas, como o estádio de Braga, de Eduardo Souto de Moura. Para o projecto expositivo seria ainda contratado o arquitecto Nuno Sampaio.
Na opinião de Ricardo Bak Gordon, “o que acontece ali, no primeiro gesto, é que há um estudo crítico do lugar”. A primeira maquete pública do museu mostrava então uma grande nave de 150 metros de cumprimento por 54 de largura, elevada sobre pilares de secção circular; um edifício anexo, de cerca de 45 metros de lado, estruturalmente mais expressivo; uma passadeira aérea pedonal sobre a via férrea; e um silo automóvel de forma cilíndrica, junto à margem do rio. O conjunto actual comporta os dois edifícios iniciais, ainda que a grande nave tenha sido reduzida cerca de 24 metros no comprimento e seis na largura. Manteve-se a passarela superior, cuja obra foi recentemente adjudicada, e desistiu-se do silo. A inauguração será realizada sem que o projecto expositivo tenha sido implementado. Consequentemente, os visitantes terão oportunidade de confrontar os coches barrocos e românticos, fabricados entre os séculos XVIII e XIX, com o espaço da grande nave. O objectivo, desde o início, era encontrar o melhor “relicário” possível para aqueles objectos. Bak Gordon confirma que existiu uma vontade em criar um espaço que amparasse e preservasse esses “carros extraordinários”, como se permanecessem “dentro de um estojo”.
Acede-se ao museu pelo piso térreo, através de dois elevadores, cada um com capacidade para 75 utilizadores, que conduzem os visitantes ao piso superior onde se localiza o núcleo museológico central. As duas salas principais, com 18 metros de largura e 8,50 metros de pé-direito, ocupam toda a extensão longitudinal do edifício principal. Sala de mostras temporárias, biblioteca, serviços educativos, oficinas de restauro e uma “lanchonete”, ou cafetaria popular, completam o programa, distribuindo-se pelos dois pisos. No anexo, restaurante e serviços administrativos, e um auditório no térreo, reforçam as valências do novo museu. A implantação em L, que os dois edifícios configuram entre si, favorece a formação de um pátio interior, simultaneamente acolhedor e urbano. A permeabilidade do piso térreo celebra o chão da cidade e cria diferentes escalas de uso. Parte da complexidade do novo conjunto joga-se exactamente aí.
É difícil não reconhecer aqui uma matriz de espaço museológico que recua ao Museu de Arte Moderna, do Rio de Janeiro, que Affonso Eduardo Reidy projectou em 1954 para a baía de Guanabara: a mesma implantação junto à água; a mesma amplitude de espaço interior que intensifica a continuidade espacial com o chão da cidade. Em Lisboa, no interior do novo museu dos Coches, dá-se a ilusão de que o espaço público prossegue, ainda que agora num plano elevado. A paisagem urbana ganha enquadramentos panorâmicos: do restaurante avistam-se os socalcos do palácio de Belém, subitamente em continuidade perspectiva; dos vãos da nave enfrenta-se a outra borda do Tejo. É uma geografia construída também com a margem sul, leitura que Mendes da Rocha procura intensificar.
Ricardo Bak Gordon, em cujo escritório de Lisboa o projecto foi desenvolvido, explica esta abordagem em macro-escala privilegiada por Mendes da Rocha: “No início do projecto, aos olhos do arquitecto, e suponho que de todos nós, levantava-se a questão do programa e do lugar. Paulo Mendes da Rocha olhou com uma distância crítica, que permitiu avaliar o conjunto urbanístico, cultural e arquitectónico de Belém enquanto uma unidade; um território rectangular em frente às águas e que teve até hoje o seu extremo nascente incompleto, excluído da própria vivência do espaço público.” O projecto nasce portanto com o desígnio de rematar um tecido urbano, mais claramente de esclarecer a relação entre a antiga linha de praia, que corresponde à Rua da Junqueira, e os aterros que criaram a actual paisagem.
Mas o modo como isso é proposto escapa, na opinião de Bak Gordon, a uma matriz “europeia”. Há uma inscrição infraestrutural que se reproduz na forma como resiste à fragmentação da envolvente, esboçando a ideia de gesto. Evoca-se aqui a tradição da arquitectura paulista, os mestres modernos dos anos 50 e 60 do século passado, principalmente João Vilanova Artigas. É uma postura política que se repercute no desenho de arquitectura. “E que princípios são esses? Um deles, claramente, é o de que o chão da cidade é um espaço contínuo, público, social, que não pode ser, nem deve ser limitado, bloqueado, ou sectorizado. A partir daí surge a ideia de levantar os espaços programáticos do chão”. Conquistada esta etapa, Bak Gordon conclui: “Se se levanta o edifício do chão – contrariando-se as leis da Física – , então a estrutura ganha um papel fundacional nas opções arquitectónicas. E daqui para a frente continuamos a construir um discurso em que Arte, Ciência e Técnica estão presentes, naquilo que é a resposta que as soluções arquitectónicas oferecem para ampliar as virtudes do lugar”.
Consequentemente, o novo museu não podia, em absoluto, “ser desenhado por um arquitecto europeu”. Esta é uma evidência que faz desta obra a peça que faltava no espaço simbólico do conjunto monumental de Belém, redireccionando novamente a atenção daquele lugar para o Atlântico. A Paulo Mendes da Rocha, aliás, agrada-lhe a ideia do edifício retomar “uma perspectiva Portugal Brasil”, e disso também nos falou a partir de São Paulo.
Cabe assim, ao falar do Museu dos Coches, celebrar territórios novos, em construção, que desafiam permanentemente os limites da técnica, um substituto afectivo do passado. A cultura arquitectónica brasileira, na qual o edifício se inscreve com naturalidade, é uma continuidade da arquitectura moderna na medida em que esbate o tempo histórico. A forma moderna do museu interpela os diferentes estratos históricos da cidade naquele lugar especifico: do mosteiro manuelino dos Jerónimos, ao palácio neoclássico presidencial; do museu da Marinha ao Centro Cultural de Belém. Obra progressista, o Museu dos Coches é uma importação do “mundo novo”: auto-suficiente, brutal, belíssima ela mesma. E é também a mais importante obra de arquitectura de Paulo Mendes da Rocha construída na Europa. Sem dúvida, que vai ser bonita a festa, pá.
Crítica de arquitectura