“O sentido da literatura é fazer o leitor pensar, o resto é Disneylândia”
Há alguma coisa que acontece nas casas do centro histórico de Paraty que vai além do programa oficial da FLIP. O PÚBLICO foi ver o que se passava fora da “tenda”.
Estão todos espremidos e espalhados pelo chão ou nos poucos bancos em uma das casas centenárias de Paraty. O público é mais jovem e parece mais ávido do que a plateia que lota a tenda com a programação oficial da Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP). O cubano Leonardo Padura, autor de O Homem que Gostava de Cães (Porto Editora), romance sobre o assassinato de Leon Trótski e a história de seu assassino Ramón Mercader, entra para um bate-papo informal na Rádio Batuta, na casa do Instituto Moreira Salles (IMS), e já começa com uma confissão: “Quanto mais informação se tem sobre um personagem mais dificil é escrever sobre ele”. Padura brinca a falar de Trótski - “Ele dava tantas entrevistas como eu agora”.
Custou. Foi dificil entrar no interior deste personagem, um trabalho diferente de um biógrafo. Padura mostrava aos amigos as primeiras versões do romance mas havia algo de “errado” que não conseguiam identificar. “Até que percebi que não podia escrever na primeira pessoa. O que sabia eu, um cubano do século XX, sobre a alma daquele judeu russo, ucraniano, que nascera no século XIX, que viajara tanto pela Europa e fizera duas revoluções?” Mudou para a terceira pessoa e resolveu o problema. Com tantas traduções e prémios ainda há um sítio onde o livro não foi traduzido: a Rússia, justamente o primeiro país em que ele achava que o romance seria publicado. “Mas foi em Cuba, onde eu nunca imaginei que seria”.
Padura está a menos de 10 metros da plateia que não se importa nada com o desconforto para ouvi-lo contar histórias como a da brasileira que se gabava por ter comprado o seu livro em Havana por 20 dólares. “Um livro custa em média um dólar, ela pagou o equivalente ao que o livreiro ganha em um mês. Fez um cubano feliz” – ri. - É muito dificil explicar a realidade de Cuba para quem é de fora.”
"Há leitores que me dizem que o romance ensinou-lhes algo sobre suas próprias vidas. É a historia de uma derrota e isso é que é um pouco o sentido da literatura: falar dos problemas que afectam a condição humana, fazer o leitor pensar, o resto é Disneylândia, é o mundo virtual, é o King Kong que está sempre a tentar nos tragar” – conclui.
Somos todos trezentos
“Escrever tem muito a ver com raiva. A escrita começa com raiva, com estranhamento.” As palavras são de Gonçalo M. Tavares em outra casa no centro histórico de Paraty, à beira do mar, a Casa Cais, expansão do espaço virtual de residências artísticas. A cena se repete: um público jovem e ávido em mais um dos eventos gratuitos e paralelos da FLIP.
Por quase duas horas – duração maior do que qualquer mesa da tenda principal e com uma proximidade que seria impossível num ambiente mais formal - Gonçalo M. Tavares fala de literatura, dos objectos que determinam os movimentos da vida e da escrita, do medo do vazio, do tédio que precede à criatividade, e até mostra o beijo que, para ele, é o mais lindo do cinema (A Infância de Ivan, do russo Andrei Tarkovski). Os brasileiros querem mais.
“Temos que ser indelicados se não perdemos a nossa vida, cada vez mais são exigidas indelicadezas”. Refere-se ao poema de Rimbaud Por delicadeza/ Perdi minha vida. Explica que num mundo que exige o nosso tempo o tempo todo e em que estamos rodeados por máquinas, se surpreende com quem vai tomar café com pessoas desinteressantes. “Agem como se fossem imortais, um imortal tem tempo para tomar café com um tonto, um mortal não" - e arranca risos na sala lotada.
Ao falar do fascismo da língua que ignora “sermos uma e muitas pessoas ao mesmo tempo”, Gonçalo M. Tavares parece traduzir o espírito do homenageado da FLIP, o intelectual mais importante da Semana de Arte Moderna de 1922, o brasileiro Mário de Andrade. “A Língua deveria permitir que o eu fosse usado no plural Eu somos muitos”. Inevitável pensar no “Eu sou trezentos” - uma das frases mais emblemáticas de Mário de Andrade e título da recente biografia escrita pelo especialista em Modernismo, Eduardo Jardim, que abriu a Festa em Paraty.
“Mário da minha admiração, vá à merda!"
Vinte quatro horas antes, nesta mesma casa os brasileiros acotovelavam-se, faziam fila, espreitavam pela janela, quase discutiam para garantir um lugar e ouvir a voz de Mário de Andrade através de sua extensa troca de correspondência.
“Mário da minha admiração, vá à merda! Não tenho que lhe dar satisfação dos meus sentimentos por mais sentimentais" – o ensaísta e professor de Letras da PUC do Rio de Janeiro, Júlio Diniz, começa a ler a carta de Dezembro de 1925 do poeta Manuel Bandeira (autor do poema Vou-me embora para Pasárgada) com quem Mário se correspondeu "religiosamente" durante anos.
A cantora Adriana Calcanhotto deu voz a Mário “Manu do meu coração... fui à merda como você me mandou (…). Repare no carinho infinito, atenção paterna com que você quer que minhas coisas fiquem excelentes. Não é a gente falando um para o outro eu sou amigo de você que mostra amizade não. É num pensamento constante do amigo, é uma palpitação pelo amigo e no desejo de sentir o amigo quando se está longe E você se for capaz afirme que não sente isso por mim. Sente Manu.”
Os dois seguem a ler cartas de três destinatários incontornáveis da cultura brasileira: além de Manuel Bandeira, o poeta Carlos Drummond de Andrade e a pintora Tarsila do Amaral. Foi a única sessão durante a FLIP dedicada à leitura da actividade epistolar do intelectual brasileiro. Estima-se que tenham sido 15 mil escritas até Mário de Andrade morrer aos 51 anos.
Entre as cartas, Calcanhotto dedilha o violão e os poemas de Mário de Andrade transformam-se em música.
“Vieste dum futuro selvagem,/ todo fera e diamante bruto,/ trazido pelo vento sul,/ Vento sul. (… ) Mas a devastação fraterna/ Incendeia o coração puro/ Em labaredas de ouro e azul,/ Vento sul. //E na promessa do teu nome,/ Partindo os espelhos do escuro./ Me converteste em vento sul,/ Vento sul.”
Aplausos ecoam pela sala abarrotada. O público começa a esvaziar a casa. Já é noite mas ninguém parece preocupado com a brisa lá fora. As palavras de Mário de Andrade parecem um sopro que vem do Sul.