Endireitem as costas dos vossos assentos
Foi de Belém que num dia de 1922 partiram Gago Coutinho e Sacadura Cabral num pequeno hidroavião. Cabeças entre as nuvens e olhos postos no Brasil. Só tinham de conseguir passar o oceano.
Da próxima vez que entrar num aeroporto vou pensar neles. Vou pensar neles quando passar pela segurança, mostrando malas, abrindo estojos de produtos de higiene, ligando computadores para provar que não vão explodir. Vou pensar neles quando ouvir as recomendações de segurança, endireite as costas da cadeira e a mesa à sua frente, o colete insufla-se assim, as saídas de emergência estão indicadas por luzes no chão, ponha a sua máscara de oxigénio antes de ajudar a criança ao seu lado. Vou pensar neles quando me perguntarem se quero peixe ou carne ou se prefiro sumo ou vinho.
Gago Coutinho e Sacadura Cabral partiram de Lisboa — mais exactamente de Belém — no dia 30 de Março de 1922. Entraram os dois no avião que tinha sido criado especialmente para a viagem, um hidroavião monomotor Fairey F III-D, com um motor Rolls-Royce e o nome Lusitânia.
Sacadura Cabral era o piloto, Gago Coutinho o navegador e levava consigo um horizonte artificial adaptado a um sextante — um instrumento de navegação que ele próprio criara. Tinham um destino: o Brasil. Seria a primeira travessia aérea do Atlântico Sul.
Paro junto à Torre de Belém para olhar a réplica do pequeno avião junto ao Tejo. Uma hélice, dois pares de asas, uma estrutura frágil, um interior com espaço apenas para os dois tripulantes, de cabecinhas de fora, protegidas com uns simples capacetes e uns óculos, como se fossem dar uma volta de moto.
Há várias imagens de Coutinho e Cabral preparando a viagem. Numa delas, discutem calmamente o trajecto, fazendo medições com réguas sobre mapas. Noutra, sobem para o hidroavião, que é retirado de um hangar por um grupo de homens, experimentando os respectivos lugares. Separava-os do Brasil todo um oceano e um número de horas de voo que, somadas, totalizariam três dias no ar, mas nada disso parecia assustá-los.
A primeira etapa da viagem levou-os até Las Palmas, nas Canárias. Daí partiram, a 5 de Abril, para a ilha de São Vicente, Cabo Verde onde ficaram por 12 dias, largando depois da ilha de Santiago com destino ao Brasil. Já com os rochedos do arquipélago de São Pedro e São Paulo à vista, o Lusitânia perde um dos flutuadores e afunda-se, mas Gago Coutinho e Sacadura Cabral são auxiliados pelo cruzador República, da Marinha Portuguesa, que os leva a Fernando de Noronha.
Os dois homens eram já, por essa altura, heróis em Portugal e no Brasil e tinham decidido não desistir da viagem, pelo que o Governo português lhes envia um segundo hidroavião, que é levado até Fernando de Noronha pelo paquete brasileiro Bagé, a bordo do qual seguem vários jornalistas portugueses (O Século, Diário de Notícias, Diário de Lisboa, A Imprensa da Manhã, O Comércio do Porto e O Dia), um fotógrafo e uma equipa de imagens da Invicta Film dirigida pelo realizador Henrique Alegria.
Vale a pena ver nesse filme (disponível na Internet) as imagens dos jornalistas, descontraídos, a escrevinhar as suas notas de reportagem, sentados no navio. E, em pose sorridente, a “formosíssima rapariga que viaja connosco, a mesma linda rapariga brasileira que tanto impressionou os que ficaram [em Lisboa]”, nas palavras do jornalista Tomás Ribeiro Colaço.
O novo hidroavião recebeu o nome de Pátria e nele partiram de Fernando de Noronha. Mas rapidamente sofreram um problema no motor que os obrigou a fazer uma amaragem de emergência. Durante nove horas esperaram ajuda no mar, até que um cargueiro inglês os socorreu.
Novamente em Fernando de Noronha, esperaram o terceiro avião, o Santa Cruz — é isto que explica que a réplica que se vê em Belém tenha um nome diferente do verdadeiro avião, que se pode ver no Museu da Marinha, em Lisboa. Foi o Santa Cruz que levou finalmente os dois homens até à recepção apoteótica em várias cidades brasileiras, culminando no Rio de Janeiro.
Isto é o que a história nos conta. É possível encontrar imagens de Gago Coutinho e Sacadura Cabral em Belém, antes da partida, e, consagrados heróis, nas chegadas. Mas só eles sabem como foram aquelas horas no ar, sobrevoando o oceano, encaixados num espaço mínimo e com a cabeça de fora, entre as nuvens, calculando distâncias e atentos ao som do motor único que os mantinha no ar. Sem hospedeiras simpáticas a fazer avisos de segurança e sem sequer poderem escolher se queriam chá ou café.