Prometi tomar conta de mim mesmo como o mais ajuizado dos homens. Fiz todos os planos para uma dieta saudável que servisse inclusive de emancipação definitiva para as minhas fomes e cuidadas gulas. Ainda pesquisei sobre mercados e supermercados, feiras de produtos naturais e outras coisas preciosas com reminiscências honestas das aldeias e da verdade. Trouxe até livros de receitas mas, desde que cheguei a Boston, só como porcarias com rótulos manhosos, vendidas em filas de clientes igualmente aflitos e invariavelmente gordos. Por causa disso, caminho dez quilómetros por dia, a esperar derreter a vergonha entranhada na alma por afinal não ter juízo.
Sou culinariamente estragado. Cheio de mimos, quero dizer. Para a mesa, faltou-me a tropa toda. Penso na comida como numa dimensão da felicidade, o que chega a ser pecado à moda antiga. Aprecio a beleza da comida e escolho-a grandemente pelo doce, como as crianças. Gosto de tudo aperaltado de cores, limpo, sem ossos ou esquisitices, e cheio de sabor, molhos e especiarias e ervas polvilhadas, queijos e natas, frutas à mistura, como se tudo fosse tão bom quanto a sobremesa. Eu gosto de comida bonita e com ar de festa ou montra de pastelaria, ou montra de ourivesaria.
A promessa sincera que me fiz é apanágio do ingénuo que sou. Ainda acredito que mudarei à força da informação a que acedo. Quero dizer, à força de vontade. Mas a minha vontade é submissa às palavras, à música, à estupefacção diante da pintura. Quero muito cozinhar um almoço brilhante, orgulhoso de mim, mas o tempo passa e estou embasbacado com o Itzhak Perlman a tocar. Fico esmagado, incapaz de agir. O Itzhak Perlman destrói completamente a minha vida e a única forma de sobrevivência que me acode é a escrita. Comer confina-se à humilhante materialidade da vida, perde toda a graça, é da dimensão animal na sua acepção também frustrantemente escatológica. Se pensarmos nisso, comer é muito escatológico. Torna-se odioso que sejamos condenados à alimentação, essa disciplina perversa que nos impede de todo e qualquer absoluto.
Por causa do Itzhak Perlman, tenho esta maneira inquinada de ser. Ando como pardo nas ruas e só presto atenção à probabilidade da poesia. Estou tão desnaturalizado que me iludo com os artifícios. Já penso que o real é um objecto estético. Encaro-o pela maravilha ostensiva, uma evidência que emana das coisas como sonhos à solta. Estou em Boston como um observador de maravilhas. A comer de embalagens manhosas e a ver maravilhas.
Precipitadamente convidei algumas pessoas para uns jantares em minha casa. Julgava eu que haveria de fazer o frango de caril que impinjo a toda a gente. Mas a verdade é que não vejo talhos, não vejo senão hambúrgueres e coisas aos pedacinhos que já se vendem com molho barbecue ou maionese. Não percebo ainda de onde vem a comida desta terra. Estou rodeado de lojas de conveniência que têm tudo ao despacho em sacos pequenos a custar fortunas. Não parece mercado de verdade. Parece assim para um lanche, mas não para se ter visitas em casa, abrir um vinho, conversar. A comida americana não está optimizada para conversas, não está optimizada para as mesas. É uma coisa a pé. À pressa.
Já pensei servir aos meus convidados apenas o Itzhak Perlman a tocar. Se houver sorte de sofrerem da mesma síndrome de Stendhal que sofro eu, vão cuidar apenas de uma fome espiritual. A ementa, sei, será perfeita. Mas temo que não me entendam. Para quem for menos atrapalhado da culinária, até uma cidade como Boston é capaz de ter sentido. Com duas semanas de intensa procura, eu ainda não percebi nada.