Todas as memórias podem dar livros

Nas últimas décadas, os historiadores começaram a valorizar cada vez mais a história individual e privada. Uma nova associação está a guardar, em Lisboa, diários de anónimos. E quer publicar alguns deles.

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A História aprendeu a valorizar as micronarrativas e a respiração de quotidiano que transportam.
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O bisavô da designer Clara Barbacini combateu e morreu nas trincheiras da I Guerra Mundial. Não foi um nome conhecido, não consta nas listas dos grandes heróis, foi apenas um homem comum que um dia viu chegar o fim e escreveu uma última carta à mulher. Foi durante a Campanha Italiana. Mais concretamente, foi nas primeiras Batalhas de Isonzo, de 1915 e 1916, quando o exército italiano decidiu capturar a cidade de Gorizia.

Numa carta anterior, a mulher mandara-lhe uma fotografia dela com os filhos. Na resposta ele pedira-lhe risonho que, da próxima vez, fossem a um fotógrafo melhor porque, de tanto beijar a imagem, a tinta já estava a desaparecer.

As trocas eram frequentes. Até ao momento em que se soube do avanço iminente sobre Gorizia. Os soldados rasos iriam à frente, claro. Como em todas as guerras, os soldados rasos eram carne para canhão e o bisavô de Clara era soldado raso. Percebeu. Na última mensagem à mulher escreveu: “Se eu não voltar…”

Há alguns anos que Clara encontrou estas cartas. Foi delas que nasceu o seu fascínio por biografias de anónimos. Foi a partir delas, também, que surgiu a Associação Arquivo dos Diários, que criou com o sociólogo Roberto Falanga, outro italiano radicado em Portugal.

Deixar uma marca no mundo

Fundada há dois anos, a associação tem agora um espaço – na Biblioteca de São Lázaro, a biblioteca mais antiga de Lisboa e situada na maior e mais diversificada freguesia da capital: Arroios. Até agora, tem contribuído no projecto da União Europeia intitulado Through the Memories. Para ele, vem trabalhando com jovens portugueses sobre a Revolução dos Cravos, momento marco da história nacional. Para fazer mais era preciso assegurar um espaço que permitisse arquivar, tratar e dar garantias de preservação aos materiais recolhidos. E também reunir uma equipa de historiadores e arquivistas, assegurar apoio técnico e jurídico. Agora que essa estrutura está montada, a associação está, por fim, a começar a recolher as cartas e diários através dos quais os portugueses poderão contar a sua história. Como Itália vem fazendo com o Archivio Diarístico Nazionale, que serviu de referência a Clara e Roberto.

Em Pieve Santo Stefano, na Toscana, o Archivio Diarístico, foi criado em 1984 pelo jornalista e escritor Saverio Tutino. Guarda hoje cerca de sete mil diários, cartas e alguns objectos especiais. Como o lençol em que Clelia Marchi registou a sua vida.

Filha de camponeses, Clelia nasceu em 1912. Mal aprendeu a ler e escrever. Casou cedo com Anteo, com quem teve sete filhos. Em 1982, quando ele morreu, pegou num dos lençóis em que tinham dormido juntos durante décadas e contou a vida comum do casal e dos três filhos que sobreviveram à infância. Esse lençol escrito a negro é hoje um dos grandes símbolos do arquivo de Pieve. E, em 2006, a morte de Clelia, aos 93 anos, foi notícia – morrera uma “contadora”, disse a imprensa regional.

“Todos queremos deixar uma marca no mundo, um sinal de que passámos por cá”, diz Clara. Os arquivos como o que ela e Roberto se propõem construir em Lisboa fazem com que as pequenas vozes, silenciadas pelo ribombar maior da dos grandes protagonistas, encontrem também o seu lugar.

Um lugar, na verdade, cada vez mais reconhecido pela História, que aprendeu a valorizar as micronarrativas e a respiração de quotidiano que transportam.

Roberto, que estudou em Itália e Espanha e acabou por se doutorar em Coimbra, é um leitor ávido desse tipo de registo. “Aprendi mais ler diários dos que fugiram da zona vermelha do franquismo do que a estudar manuais escolares”, recorda.

Não se trata de desvalorizar os manuais escolares, sublinha o investigador. “Mas com os diários entramos na casa das pessoas, temos acesso aos seus pequenos grandes tormentos.” Temos acesso à vivência individual e, através dela, a diferentes perspectivas sobre os grandes acontecimentos históricos. Ou, como diz Clara, acedemos a “uma visão da história que vem de baixo e às implicações da política na vida social”.

É o que acontece com o conhecido diário do cantoneiro siciliano Vincenzo Rabito.

Nascido em 1899, Rabito tinha já um ano quando os primeiros dias do século XX chegaram. Foi chamado a combater na I Guerra Mundial, trabalhou em minas alemãs até aos primeiros dias da Grande Guerra seguinte. Acabou por voltar a Itália, casar e ter três filhos. Semianalfabeto, estava a chegar ao fim da vida quando comprou uma Olivetti e se sentou a escrever as suas memórias. Foi de 1968 a 1975. Sete anos de escrita, sozinho, fechado num quarto, em segredo.

Rabito fez uma transliteração fonética do seu dialecto siciliano, cada palavra separada por um ponto e vírgula – mais de mil páginas sem qualquer outra pontuação, nenhuma pausa. Em 2007 a conhecida editora Einaudi publicou essa obra – revista e editada – sob o título Terra Matta. Cinco anos depois, o livro deu um filme documental, o multipremiado Terramatta: o século XX italiano do analfabeto siciliano Vincenzo Rabito.

O arquivo italiano tem um enfoque particular na Grande Guerra. “A guerra faz os soldados bonitos. A vida ao relento nas intempéries selecciona os melhores”, escreveu em Junho de 1915 o médico Gino Frontali. “Desde as primeiras semanas de guerra mandei internar […] uma série de indivíduos débeis. Esses bons camponeses do Casentino e do Mugelli deixaram crescer as barbas e ficaram com umas caras engraçadas de bandidos. Trabalhando com a enxada doze a catorze horas por dia, ganharam bicípites de aço. Alguns apresentam-se à consulta declarando simplesmente: - estou bem, mas tenho fome. Não lhes chega um quilo de pão, a carne, a massa, o queijo, da ração de guerra aumentada por se encontrarem alta montanha. Doentes já há poucos. De vez em quando um deles vem pedir um conselho confidencial: preocupado com a fidelidade da mulher, quer obter informações sobre doenças venéreas e sobre suspensão das menstruações. […] São quase todos ligados à família de uma forma comovente. Vivem aguardando o postal de casa. Mas da guerra, experimentam uma única coisa: o desejo que acabe.”

Os relatos do capitão Paolo Ciotti são mais duros. A 14 de Julho de 1915 escreveu: “Vou ao posto avançado para inspecção. […] faço uma descoberta macabra; encontro um morto da segunda companhia. Tem uma perna estropiada por um rebentamento; o sangue gruma-se tão demoradamente que parece jorrar ainda fresco; a face continua curada de um vermelho fogo, os olhos estão arregalados. As moscas agitam-se-lhe nos pelos da barba arruivada, dando a impressão que a barba se move e que os olhos também fitam, vivos. Mandei-o sepultar lá perto e na vala coloquei uma cruz improvisada.”

Portugal não teve o mesmo envolvimento que Itália na guerra. Mas Roberto vê em Portugal um mundo enorme por contar – uma História viva, na rua. “Foi isso que senti quando cheguei cá e ouvi falar crioulo por todo o lado”, diz o investigador. “Em Itália, estudamos o Império português em dois parágrafos. Em Coimbra, quando comecei a estudar ao lado de brasileiros, cabo-verdianos e moçambicanos foi uma experiência brutal, porque percebi que aquelas pessoas não eram apenas uma fotografia na página x do livro de História. São muito reais e têm histórias para contar.”   

O arquivo de Lisboa não tem qualquer recorte temático específico, no entanto, há temas portugueses que Clara e Roberto gostariam de ver surgir. É o caso da Guerra Colonial, do 25 de Abril de 1974 e do retorno das colónias, nomeadamente na Ponte Aérea de 1975.  

“Espero que os portugueses desmintam o pudor como traço da sua cultura”, diz Roberto. “Sei que vai ser complicado, mas desafiante. E acho que só o facto de alguém se questionar se deve ou não entregar [os diários e cartas da sua família] já é bom. Estimula o pensamento. Nesse tempo de reflexão o tema esteve ali, a ser considerado.”

Tal como em Itália, está prevista a publicação anual de pelo menos um diário: quem entrega os seus materiais pode escolher participar num concurso aberto até 1 de Março próximo. Depois, um painel de dois júris – um popular e um técnico – escolherá um vencedor. Será publicado pela Penguin – Companhia das Letras.

Clara e Roberto sabem que as mesmas resistências que alguns terão em entregar os seus materiais poderão interpor-se contra a vontade de publicar. Recordam o caso de uma mulher italiana, vítima de violência doméstica, que, depois de ganhar o concurso, tardou anos a ir receber o prémio. Foi apenas quando o marido morreu. Depois, há as questões legais – aplicáveis, por exemplo, no caso de pessoas que encontram ou compram materiais que não se importam de doar mas que dizem respeito a terceiros, desconhecidos. “Sabemos que estamos a tocar assuntos muito delicados”, asseguram.

As entregas podem ser feitas na Biblioteca de São Lázaro todos os sábados das 11h às 13h e a associação tem um site com toda a informação em www.arquivodosdiarios.pt. Tem também uma página de Facebook.

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