O acordo climático de Paris e a lógica dos tijolos
O que resultou de Paris é claramente insuficiente para resolver o problema. Mas pelo menos temos mais pedreiros.
Quem acompanha as cimeiras anuais da ONU sobre alterações climáticas lembrará bem da que ocorreu em Haia, em 2000. Era um encontro fundamental para regulamentar e pôr em prática o Protocolo de Quioto, aprovado três anos antes. Até ao seu último dia, não havia ainda acordo. Mas o centro de exposições onde se realizava tinha de ser libertado para outro evento qualquer. Não havia tempo para um prolongamento e a COP6 – como era chamada – foi suspensa, já os funcionários começavam a desmontar painéis, stands e o centro de imprensa.
Retomada seis meses depois em Bona como COP6-bis, acabou por cumprir a sua missão, encerrando com aplausos emotivos. Com as suas normas definidas, Quioto tinha todas as condições para ir adiante. Mas não foi, pelo menos da forma como se queria. Os Estados Unidos deixaram logo o barco, condenando o protocolo à agonia. Mais tarde, outros países ricos desinteressaram-se de o prolongar, porque só eles eram obrigados a reduzir emissões de CO2, mas não grandes economias emergentes, como a China, Índia ou Brasil.
Em 2007, voltaram-se a ouvir palmas comoventes na COP13, em Bali, Indonésia. Lançou-se ali um novo processo, independente de Quioto, que deveria envolver todos os países em esforços para conter o aquecimento global. O plano era aprovar em 2009 um novo tratado internacional. Mas a COP15, em Copenhaga, ao invés de decisiva, acabou em caos e fracasso.
Com este histórico de entusiasmos e frustrações, ficamos sem saber se merecem crédito ou suspeita os resultados da cimeira de Paris – que terminou no sábado passado em ovação, júbilo e até lágrimas. O Acordo de Paris comprometeu todos os países a fazerem alguma coisa e agendou o fim da era dos combustíveis fósseis para a segunda metade deste século. Mas quem garante que, dentro de alguns anos, não estejamos perante um novo fiasco?
As circunstâncias hoje são completamente diferentes das de Quioto, Haia, Bali ou Copenhaga. Os Estados Unidos, que sempre foram vistos como o vilão-mor do clima, agora vestem a pele de herói. Barack Obama já disse que o Acordo de Paris resulta directamente da liderança norte-americana na área das alterações climáticas. Embora imodesto, em parte tem razão.
A China saiu da toca onde esteve quieta durante muitos anos, enquanto crescia exponencialmente à custa do carvão. Agora, quer ser um actor global e escolheu a arena climática como o palco.
A postura de ambos os países simboliza uma faceta transformadora de Paris: ali começou a cair o muro que há duas décadas divide o mundo em apenas dois blocos, nações ricas de um lado e pobres do outro.
É certo que a estrutura desta parede mantém-se intacta, e o texto acordado contempla obrigações distintas a países desenvolvidos e em desenvolvimento. Porém há agora uma acentuada diferenciação dentro do segundo bloco, com mais referências específicas aos países menos desenvolvidos – os pobres entre os pobres – e aos estados-ilha, os mais vulneráveis às alterações climáticas.
Muito do que o acordo exige aos países em desenvolvimento também está condicionado às “capacidades” de cada um – um conceito vago que não se sabe ao certo ainda como será posto em prática.
A maior brecha naquela visão de um mundo bifurcado está no facto de todos, sem excepção, terem obrigatoriamente de apresentar, monitorizar e reforçar periodicamente o seu contributo para conter a subida dos termómetros – algo impensável há 15 anos.
A meta do Acordo de Paris é manter o aquecimento abaixo de 1,5-2ºC. Para lá chegar é preciso construir uma escada, para a qual cada um tem de trazer um tijolo. A primeira ronda de contribuições já permitiu assentar alguns degraus, mas ainda insuficientes para atingir o topo. Serão necessários mais tijolos, e maiores, para a escada crescer.
Um dos problemas está em quem paga para que os países mais pobres – que pouco contribuíram para o problema – consigam fabricar bons tijolos. Os 100 mil milhões de dólares anuais de ajuda prometidos pelos países ricos a partir de 2020 não cobrem a factura. Basta olhar para os planos climáticos dos países ditos em desenvolvimento. O de Angola, por exemplo, prevê necessidades de 16 mil milhões de dólares para conter a subida das suas emissões de gases com efeito de estufa e para a sua adaptação a um mundo mais quente.
Os países ricos mantêm o seu compromisso e prometem reforçá-lo. Mas querem, cada vez mais, que a ajuda venha de uma pool de fontes – incluindo da iniciativa privada.
A verdade é que, com ou sem ajuda oficial, o dinheiro já está a circular. Uma das marcas desta cimeira climática foi a profusão de anúncios de iniciativas, projectos e alianças envolvendo investimentos de múltiplas origens. Um entre dezenas de exemplos: a Agenda de Acção Lima-Paris, lançada pela própria ONU, já resultou em 70 iniciativas, envolvendo dez mil parceiros, em 180 países, mobilizando centenas de milhares de milhões de dólares para o clima.
Nas primeiras cimeiras climáticas, os eventos paralelos, extra-negociações, eram poucos e giravam à volta dos problemas. Agora, são abundantes e trazem soluções e verbas.
Nada disso é feito por caridade. A redução de emissões de gases com efeito de estufa é também um negócio. Ganha-se dinheiro com um parque eólico ou com painéis solares, como se ganha com um poço de petróleo ou uma mina de carvão. Além disso, diminuir a poluição resulta em maior eficiência e consequentemente menos custos.
É neste contexto que se consegue compreender o objectivo de se chegar a uma quase neutralidade das emissões globais algures na segunda metade deste século, tal como está inscrito no Acordo de Paris. Os governos sabem que o mercado anda tão ou mais rápido do que as políticas. Dentro de três a oito décadas – um intervalo confortável para quem não se quer comprometer – acabará por ser mais lucrativo usar apenas energias renováveis.
É sintomático ver que, mesmo que o Protocolo de Quioto tenha sido abandonado pelos EUA e outros, as emissões de CO2 do conjunto de países nele originalmente representados caíram 13% entre 1990 e 2012. A crise económica recente contribuiu muito para este resultado, mas o efeito do avanço das renováveis, em particular na União Europeia, não pode ser negligenciado.
Sem supresa, muitas organizações empresariais reagiram bem ao Acordo de Paris. Mas querem o passo seguinte: políticas nacionais que lhes facilitem os negócios, em particular um preço sobre o carbono, para viabilizar alternativas que hoje são ainda mais caras. Naturalmente haverá vencedores e vencidos.
Entre a força do mercado e a política dos tijolos, estamos sem dúvida num momento novo do combate às alterações climáticas. O que resultou de Paris é claramente insuficiente para resolver o problema. Mas pelo menos há mais pedreiros a construir a tal escada.