As offshores do Tesouro
Ao discutir os Panama Papers há também que perguntar o que acontece quanto muito do que é importante em cada sociedade é offshorizado?
Robert Louis Stevenson escreveu o romance A Ilha do Tesouro que cativou (e cativa) a imaginação de múltiplas gerações. Nestes dias a nossa imaginação é atraída para outras ilhas, por vezes istmos como o Panamá, que são também de tesouros mas já não com baús perdidos, pois esses foram substituídos pelas contas de propriedade opaca.
O sociólogo John Urry sugere que o offshore é simplesmente o lado negro da globalização e o leak dos Panama Papers parece dar-lhe razão, dando sentido à pergunta: o que nos acontece a todos quando o offshore se torna a norma nas nossas sociedades?
O que escrevo não é exagero, o que podemos chamar ao offshore senão a norma quando cerca de 80% das maiores companhias mundiais possuem contas ou subsidiárias em offshores?
Teremos a noção de que mais de metade do comércio mundial decorre através desses paraísos fiscais? Ou que quase todos os indivíduos ultra-ricos do planeta têm contas offshore com intuito de proceder a "planeamento fiscal" e "optimização fiscal"?
Se estivéssemos num concurso televisivo, o que responderia o leitor à pergunta "é verdadeiro ou falso que 99 das cem maiores empresas europeias usam subsidiárias em offshores?" A resposta correcta é que é verdade.
Os offshores não são feitos de baús enterrados ou cofres fortes, mas sim de Internet, computadores e nuvens onde estão depositadas verbas que, estima-se, representem 21 mil biliões de dólares que pertencerão a menos de dez milhões de indivíduos num planeta que totalizará seis mil milhões de habitantes.
O offshoring é o lado negro da globalização, nele dinheiro é investido, produtos transacionados, lixo e resíduos depositados, energia extraída e explorada, CO2 massivamente produzido, pessoas domiciliadas ou traficadas, tudo para evitar leis, impostos, regras e regulações.
Mas para que tudo isto possa acontecer foram e são precisas novas redes que ocultem, que tornem opaco, que permitam o offshore. Sem que tal tenha, obrigatoriamente, de acontecer em ilhas – pois o Delaware, Gibraltar, Mónaco, Dubai ou o Liechtenstein não o são.
Estamos a falar de redes digitais, mas também redes complexas de leis e escritórios de advocacia, redes de empresas de consultoria, redes de estruturas financeiras globais, redes de segurança e vigilância face ao possa vir do exterior e, também, oceanos vastos e sem lei.
Este é o contexto que tem permitido a indivíduos ultra-ricos, às empresas e também aos Estados (quando criam prisões ou campos militares fora da jurisdição nacional) evadir e evitar leis, impostos, regras e regulação.
E podemos fazer algo quanto ao offshore? Muitos sugerem que não há nada a fazer, por muito que seja imoral e criminoso como o que nos mostram os Panama Papers.
O principal argumento é o do número de enclaves fiscais que hoje existem, cerca de um quarto das sociedades contemporâneas apresenta-se como propiciadora de algum tipo de oferta de "paraíso fiscal". No entanto, como sugere Urry, o offshore para existir tem de oferecer uma boa fachada, produto a de um equilíbrio entre estabilidade e mobilidade.
Essa fachada só pode existir se tudo se mantiver opaco, pouco visível para os que não fazem uso do offshore. Pois, uma vez ganhando visibilidade perde-se a fachada necessária para a sua existência.
É precisamente por isso que os Panama Papers e o trabalho do Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação são tão importantes pela visibilidade que dão aos offshore e que os enfraquece.
Mas no final apenas os Estados, pressionados pelos cidadãos, podem fazer algo quanto às offshores e ao combate à offshorização. A esse combate podemos chamar políticas de re-shorização ou, se preferirmos, Políticas de Regresso.
Podemos ter apenas agora acordado, enquanto sociedade, para o problema da offshorização mas desde há vários anos que o problema é discutido. Por isso, há toda uma agenda política a ser trazida para a discussão pública.
Para começar a dar corpo a essas políticas há que assumir que essa discussão política inclui três princípios base. O primeiro é o da adopção de uma regra que é a de que o dinheiro e os recursos devem ser sempre sujeitos à possibilidade de contestação clara, transparente e de prestação de contas numa sociedade que se pretende justa, equilibrada e que procure a redução das desigualdades.
Que há múltiplas actividades que importa fazer regressar dos offshores a "casa" e que devem ser desenhadas políticas que promovam esse regresso, seguindo um principio de proximidade (em termos de energia, resíduos ou dinheiro) e de equilíbrio para a circulação de pessoas e produtos.
Por último, que as empresas globais e internacionais necessitam de se reger pelo principio de apresentar contas "país a país" em termos de impostos e não de forma opaca e agregada.
Quanto à resposta à pergunta com que se inicia este texto, sobre o que nos acontece quando a prática do offshore se normaliza, o que se passa é que as nossas sociedades se tornam mais desiguais e a pobreza global aumenta, pois a riqueza não é gasta, nem investida, nem redistribuída onde é gerada.
A escolha é nossa e a responsabilidade é daqueles que escolhemos para representar a nossa escolha, os políticos.
Professor Catedrático do ISCTE-IUL e investigador do College d'Études Mondiales na FMSH Paris