A Constituição e as políticas públicas
Para enfrentar o futuro com confiança vale a pena aprofundar o debate sobre a Constituição e as políticas públicas.
As políticas públicas desenvolvidas ao longo dos últimos 40 anos, que permitiram transformar e modernizar o país, encontram os seus fundamentos na Constituição aprovada em 1976 e nas suas sucessivas revisões.
O texto constitucional está organizado em quatro partes. É no final da Parte I, Direitos e Deveres Fundamentais, do artigo 63.º ao 79.º, que se encontram os princípios constitucionais que consagram a obrigação do Estado de promover políticas públicas para assegurar e garantir a construção do Estado Social e o acesso de todos, em condições de igualdade, isto é, independentemente da sua condição económica ou social, de raça ou de género, a serviços de proteção social (artigo 63.º), de saúde (artigo 64.º) e de educação (artigos 74.º a 76.º), consagrando ainda deveres do Estado no campo da habitação e do ordenamento do território (artigos 65.º e 66.º).
Os fundamentos constitucionais das políticas de justiça encontram-se mais dispersos. Por um lado, derivam da consagração dos direitos, liberdades e garantias que asseguram a inclusão de todos como cidadãos, sem exclusão (artigo 12.º, sobre a universalidade), e a igualdade formal perante a lei (artigo 13.º, sobre a igualdade), bem como a proteção da vida, liberdade, escolhas e propriedade dos indivíduos, impedindo a ingerência, o abuso e o arbítrio de poder do Estado (artigos 27.º a 35.º), isto é, impondo limites e condições aos atos do Estado que possam restringir ou limitar os direitos, liberdades e garantias pessoais. Por outro lado, encontram-se ainda na Parte III do texto constitucional, onde se institui o modelo da organização política segundo os princípios da separação ou divisão de poderes (artigos 108.º a 119.º), definindo-se aí a organização dos tribunais, o estatuto dos juízes, do Ministério Público e do Tribunal Constitucional (artigos 202.º a 224.º).
Para analisar a construção do Estado de direito democrático e social e a trajetória das políticas públicas na democracia é necessário ter em conta outros textos para além da Constituição. No caso das políticas de justiça, é necessário considerar as grandes leis ordenadoras em que se declina o direito à liberdade (como, entre outras, o Código Penal e o Código do Processo Penal) e as leis que organizam o sistema de justiça. No caso das políticas sociais, é necessário ter em conta as leis de base dos sistemas sociais (como a Lei de Bases do Sistema Nacional de Saúde, a Lei de Bases da Segurança Social, a Lei de Bases do Sistema Educativo e a Lei de Bases da Política de Ordenamento do Território e de Urbanismo), bem como outros diplomas sectoriais estruturantes, nos quais se materializam os princípios constitucionais de garantia da liberdade, da universalidade, da igualdade e da igualdade de oportunidades. Estes diplomas prevêem diferentes graus de aproximação ou afastamento dos princípios constitucionais, bem como de abertura e de flexibilidade, no que respeita, por exemplo, à relação do Estado com os promotores dos sectores privado, cooperativo e social, assim como à relação entre a administração central e o poder local.
Este ano, o Fórum das Políticas Públicas abriu um espaço de debate sobre os fundamentos constitucionais das políticas públicas. Propomos neste texto a reflexão sobre três questões.
1. Apesar de estar prevista a possibilidade de fiscalização da inconstitucionalidade por omissão (artigo 283.º), sempre que os direitos, liberdades e garantias pressupõem a prestação pelo Estado de serviços públicos, não há, na prática, mecanismos judiciais para exigir que o Estado cumpra as obrigações constitucionais de promoção das políticas públicas sociais, visando a igualdade de oportunidades. A efetivação daqueles direitos não é algo que possa ser exigido individualmente pelos cidadãos através dos tribunais.
A efetiva promoção de políticas públicas só pode ser assegurada por via política, pelas escolhas dos eleitores ou pelo não-voto. Pode dizer-se que a garantia da igualdade de oportunidades e da concretização das políticas públicas depende da política e não do direito. Porém, sem a consagração das obrigações do Estado no texto constitucional dificilmente teriam sido desenvolvidas as políticas públicas que levaram à construção do Estado social e de direito que hoje temos.
2. A Constituição da República Portuguesa de 1976 afirmou um regime de Estado de direito assente nos princípios da separação de poderes e da igualdade de todos os cidadãos, sem exclusão, perante a lei. Simultaneamente, afirmou o carácter social e democrático do Estado, introduzindo, ao nível político, económico e social importantes ruturas com o regime anterior. Em 1976, haviam passado apenas dois anos da Revolução de 25 de Abril e o texto constitucional foi o compromisso possível entre os principais partidos políticos. Já nessa altura, em muitos aspetos se registavam diferenças ideológicas e divergências de visão sobre os problemas do país e sobre os modelos de organização do Estado e da sociedade, que permaneceram até aos dias de hoje. Como, por exemplo, em torno do objetivo de “abertura do caminho para uma sociedade socialista”, tendo em vista “a construção de uma sociedade sem classes”. Contudo, apesar de as diferenças entre partidos não terem sido apagadas, estas não foram impeditivas nem da aprovação do texto constitucional, nem da construção de compromissos duradouros sobre políticas concretas.
3. Os artigos da Constituição em que se fundamentam as políticas públicas mantiveram-se ao longo dos últimos 40 anos praticamente inalterados. Nos debates sobre a revisão da Constituição promovidos em diferentes espaços, apenas os princípios relacionados com as políticas de justiça têm suscitado controvérsia e propostas concretas de revisão. Mesmo no debate público suscitado pelos sucessivos pedidos de fiscalização de constitucionalidade das medidas de austeridade, que implicavam os cortes de salários, nunca estiveram em causa os fundamentos constitucionais das políticas sociais.
É necessário compreender se tal resulta do apoio unânime das forças partidárias a tais preceitos constitucionais ou se, pelo contrário, permanecem significativas diferenças político partidárias que apenas se não manifestam por a relação de forças ser desfavorável a compromissos alternativos.
Para concluir. Embora o texto constitucional tenha sido decisivo para a concretização de políticas sociais e para a promoção da igualdade de oportunidades, Portugal continua a ser, na União Europeia, um dos países com mais elevados níveis de desigualdade. Para enfrentar o futuro com confiança vale pois a pena aprofundar o debate sobre a Constituição e as políticas públicas, procurando novos compromissos que permitam continuar a construir um país mais moderno, mais justo, mais igualitário.
Professores do ISCTE-IUL e coordenadores do Fórum das Políticas Públicas