Vergílio Ferreira, a Academia e o Nobel

A necessidade de um trampolim para apoio institucional

As memórias de Vergílio Ferreira (com o título genérico Conta Corrente) completam muitos aspetos da sua obra de ficção e de ensaio. Mostram-nos, por vezes em pormenores excessivos e pouco favoráveis, o homem perante ele próprio, a família, colegas de profissão e sucessivas gerações de alunos, em especial no Liceu de Évora e no Liceu Camões, em Lisboa. Também revelam o escritor na relação com os outros escritores e, ainda, posições políticas e ideológicas assumidas no salazarismo, no marcelismo e no pós-25 de Abril. Permitem ainda situar a Conta Corrente/1726515, em lugar de incontestável destaque no âmbito do memorialismo, um setor literário, bastante rico na França e na Inglaterra mas com expressão menos significativa em escritores, poetas, dramaturgos, políticos e cientistas de língua portuguesa.

Em muitas anotações da Conta Corrente Vergílio Ferreira verifica-se a perturbação que lhe causava a evidência pública de escritores, poetas e historiadores. E, por outro lado, o desconhecimento voluntário ou involuntário de personalidades mais novas e já de referência obrigatória. Refratário a reuniões mundanas, de convívio extremamente reduzido, Vergílio Ferreira queria, paradoxalmente, estar sempre nas bocas do mundo e não tolerava que alguns dos seus contemporâneos atingissem notoriedade. Tinha a consciência do que valia, da dimensão da sua obra. Receava, contudo, ser ofuscado e preterido. Doía-lhe o sucesso dos outros, mais do que as próprias contrariedades.

Apesar disto, da permanente vitimização, foi contemplado com todas – diria antes, quase todas – as distinções prestadas a um intelectual da sua estatura. Deixou num dos tomos da Conta Corrente, este comentário, tão próprio das suas avaliações e ressentimentos: «Quanto a ser – o que é – um «monumento nacional», faz pensar. O mais antigo «monumento» é Camões. Mas só o foi talvez no século XVII e seguramente no século XIX. Herculano foi «monumento» (não tanto pela sua arte); não foi Garrett, que é melhor artista. Foi-o João de Deus; não Cesário (que, aliás, o admirava). Foi-o Junqueiro, nunca o seria Fernando Pessoa. E o Torga, como o foi Aquilino. Não o foi José Régio e nunca o poderia ser o… Ramos Rosa. Nos escritores que sobram, pode vir a sê-lo talvez uma Bessa-Luís. Duvidosamente qualquer outro, mesmo o celebrado Carlos de Oliveira. Para se ser «monumento» tem de ser visível como a parte externa da História – não o que é invisível, mesmo que seja aí a História trabalhar a sério».

Vergílio Ferreira teve muitas homenagens. Recebeu os principais prémios literários nacionais e muitos prémios internacionais de prestígio. Faltou-lhe, contudo, o Nobel da Literatura. A sua obra, aliás, reunia condições para lhe ser atribuído. Tinha gosto em recebê-lo e sentia amargamente a sua falta. O mesmo sucedeu, por exemplo, nos casos mais recentes, com outros grandes poetas e escritores como Jorge Luis Borges, que possuía muito maior amplitude e projeção do que Vergílio Ferreira.

Entre as referências na Conta Corrente sobre este tema evocou um encontro que denuncia esse irreprimível desejo. É melhor transcrever: “O espanhol Lázaro Carreter lembrou-se de me propor para o Nobel. Achei simpático, quase divertido, embora, que diabo! a condecoração me não fique pior que a qualquer outro confrade. Mas parecia-me mesquinho, um tanto pindérico, que a proposta não fosse acompanhada da colaboração de uma outra entidade. E pensei na Academia (das Ciências) de que o Jacinto Prado Coelho é presidente. Expus a questão. Levei uma tampa. Que a Academia só apadrinhava os seus académicos.” E, a seguir conclu:i “O Torga, que o não é, embora tivesse um aparato impressionante de apoios do Universo, não levou o da Academia. Agachei-me para a minha humildade, despedi-me.”

Este patrocínio da Academia começou a ser apontado como exigência prioritária e fundamental, pelo Prof. Vieira de Almeida quando com ele, em Janeiro de 1960, iniciei os depoimentos de um inquérito, no jornal Republica onde era repórter, a propósito da candidatura de Aquilino Ribeiro para contrapor a outra candidatura que avançava com Miguel Torga. Nessa guerra feroz que dividiu, implacavelmente, a oposição democrática, (até mesmo depois do 25 de Abril) afetando a estabilidade e funcionamento da Sociedade Portuguesa de Escritores – presidida com exemplar isenção por Jaime Cortesão – a Academia das Ciências evitou e receou tomar partido. Aquilino Ribeiro, embora sócio efetivo da Academia, encontrava-se implicado, pelo Tribunal Plenário, num processo politico de injúria e difamação ao regime de Salazar, devido à publicação de Quando os Lobos Uivam. Tal facto não impediu que académicos como Vitorino Nemésio, Fernando Namora e até Julio Dantas se colocassem a favor de Aquilino.

Após o 25 de Abril, numa renovação dos quadros da Academia das Ciências, Vergílio Ferreira foi contatado para ingressar mas afirmou que só aceitaria «depois de envelhecer um pouco mais». Será preferível reproduzir, a opinião que, a 17 de Fevereiro, de 1975, expressou a Fernando Namora e a Jacinto do Prado Coelho e integra a Conta Corrente: «A Academia. Há de fato um problema de «velhice». Não talvez bem na idade (59 anos), nem no modo de ser artista; é um modo de se ser em público. A gente pensa num académico e visiona-o, logo nos cadeirais, em contemplação muda e beata, trocando impressões superiores sobre o mundo exterior. Para que serve a Academia? Eu disse naturalmente ao Jacinto do Prado Coelho que entendia um académico quando já tivesse esgotado a veia; é que se lhe devia de fato uma consagração piedosa que o iludisse de estar vivo. Ou foi isto que quis dizer. A Academia seria assim uma espécie de formol. Fora dela, o cadáver literário corrompe-se e cheira mal, mais depressa, até pela inconsciência da sua corrupção».

Contudo, em 1992, Vergílio Ferreira, aos 76 anos, foi proposto formalmente para sócio correspondente da Academia das Ciências. Foi eleito. Pouco ou nada importou ao seu orgulho desmedido uma ou duas bolas pretas. Lamentavelmente exaradas em ata. (aquilo que, em certas circunstancias, costumo chamar bolas de honra!). Queria entrar. Precisava de entrar. Escreveu a tradicional carta de agradecimento mas, a seguir, não me recordo nunca de o ver nas sessões e a participar nos trabalhos.

Tinha, apenas, um objetivo: o aval para o Nobel da Literatura. A Academia das Ciências – como ficou claro nas palavras que já transcrevemos acerca do encontro com Jacinto do Prado Coelho – era apenas o espaço institucional, a rampa de lançamento para transpor o muro e conseguir um apoio sólido na formalização da candidatura.

Poucos anos depois (Torga já havia falecido), o presidente Pina Martins deu conhecimento numa sessão que a Academia Sueca solicitara à Academia das Ciências que os membros da Classe de Letras fossem consultados para indicar quais os autores portugueses que poderiam merecer o Nobel da literatura.

As opiniões, naturalmente, dividiram-se. Tanto quanto me lembro –  passaram vinte anos ou mais – Pina Martins foi dos que se pronunciou a favor de Vergílio Ferreira; Urbano Tavares Rodrigues e Luís Francisco Rebelo indigitaram Saramago; e, Henrique Barrilaro Ruas e eu, sem que combinássemos o que quer que fosse e estivéssemos sentados um ao pé do outro, avançamos com o nome de Sophia de Melo Breyner.

E qual a posição de Vergílio Ferreira? Não estava presente mas enviou uma daquelas cartas que se existissem e fossem publicadas, seriam incluídas e analisadas por André Cabré Rocha no estudo crítico e documental que consagrou à epistolografia. Essa carta muito concisa não conseguia esconder a profunda ambição que o dominava. Em muito poucas palavras Vergílio Ferreira, declarava que não se podia manifestar por ser parte interessada. Era a confissão inequívoca de que, obviamente, votaria nele próprio. As rugas, a decrepitude, a corrupção, o mau cheiro e «essa espécie» de formol da Academia das Ciências já não o incomodavam. A Academia era o trampolim necessário para a candidatura ao Premio Nobel da Literatura.

 

 

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