O planeta já não é uma questão de fósforos

Corria o ano de 1983 quando Carl Sagan, astrónomo e um dos maiores divulgadores de ciência do século passado, em direto num debate frente a Henry Kissinger na televisão norte-americana caracterizou a principal ameaça que pairava sobre o mundo na época (a corrida ao armamento nuclear num cenário de guerra fria), como “dois inimigos implacáveis que estão numa sala com gasolina até aos joelhos, um tem 9.000 fósforos, o outro tem 7.000 e cada um dos dois está preocupado em não deixar o outro ganhar vantagem”. Esta imagem bastou para que muitos percebessem o quão fútil era essa discussão, pois bastaria um fósforo para o fim chegar. Atualmente, mesmo nos nossos piores dias, a ideia de alguém acender um desses “fósforos” não está à cabeça das nossas preocupações mais urgentes.

Hoje a principal ameaça que paira sobre o globo é muito mais complexa e difusa. Não se trata da destruição total numa questão de minutos. Trata-se sim da lenta e quase deliberada destruição das bases em que estão erguidas todas as nossas sociedades e modos de vida. Se nos anos oitenta todos sabíamos onde estava o problema, hoje alguns de nós insistem em nem sequer acreditar que existe um problema. Mas pior, muito pior é que nos anos oitenta poder-se-ia adiar a resolução do problema indefinidamente pois ele não iria piorar, mas as alterações climáticas têm uma natureza completamente diferente. Não fazer nada é garantir que o problema se agrave. Não fazer nada é condenar definitivamente o planeta.

É muito comum ouvirmos falar da nossa responsabilidade para com as gerações vindouras (como pai, acreditem que é algo que levo muito a sério), mas essa abordagem coloca o problema no futuro mais ou menos distante, transforma os impactos das nossas ações em “possibilidades” e afasta-nos da realidade atual. Temos que começar a interiorizar que hoje já há países que sofrem as consequências das alterações climáticas que o nosso modo de vida impôs no mundo. Ontem tive o privilégio de assistir a um painel sobre os impactos das alterações climáticas nos SIDS (Small Islands Developing States), nos “pequenos Estados insulares em desenvolvimento” (que incluem vários países lusófonos como São Tomé e Príncipe, Timor-Leste ou Cabo Verde) e perceber o enorme desafio que estes países enfrentam diariamente. Devido às suas características (insularidade, pobreza, localização geográfica, recursos humanos, etc…) estes Estados só entram na vida da maioria dos portugueses (e restantes europeus) como referência a potenciais férias de sonho ou em breves flashes noticiosos quando acontece uma tragédia. Digo “flashes” porque geralmente não passam de pequenas notas sobre a passagem de um furacão ou tempestade, em notícias sobre o clima impiedoso que provocou milhões em prejuízos no Sul dos EUA ou algum outro lugar “relevante”. Esquecemo-nos é que 50 milhões de euros de estragos provocados num destes países representam uma fatia do PIB e têm um impacto muito mais negativo na economia local do que 5 mil milhões de estragos em propriedade sobrevalorizadas das elites do Sul da Flórida. Um responsável de Grenada relembrava que o país ainda estava a recuperar dos efeitos do furacão Ivan que, há 12 anos, fez estragos superiores a 200% do PIB do país, enquanto os 13.000 milhões de dólares de estragos causados pelo mesmo evento nos EUA, há muito que foram recuperados. O ministro do Ambiente das ilhas Maurícias relembrava que nas suas ilhas (bem como nas Fiji) já começaram as relocalizações de comunidades devido ao avanço do mar, mas que os esforços para tornar a sua nação resiliente passavam por muito mais que isso: desde a melhoria das habitações, ao reforço dos sistemas de emergência, passando pela modificação da própria agricultura da ilha e, sobretudo, por um compromisso do seu povo com o sacrifício e uma maior disciplina.

É essencial olharmos longa e demoradamente para estes pequenos Estados por duas razões: em primeiro lugar porque, atualmente, estão entre aqueles que mais sentem os impactos das alterações climáticas. Em segundo lugar, porque é tremendamente importante perceber como é que, num cenário de recursos muito limitados, estas nações planeiam e enfrentam problemas que serão também “nossos” num futuro cada vez mais próximo. É, por exemplo, interessante perceber que muitos destes Estados têm optado por criar “super ministérios” que, ao contrário do que acontece por cá, não estão centrados nas Finanças ou na Economia, mas sim nas Alterações Climáticas, Ambiente e Desenvolvimento Sustentável. Dizia um representante de Tonga, que o nome do seu ministério era tão grande que, no seu idioma nativo, daria para entrar para o Guiness. Também será importante refletir nos pedidos de financiamento que estes países têm feito. Longe vão os dias em que cada um “pedia umas migalhas” para resolver os seus problemas. Hoje juntam as suas vozes para reclamar não só programas regionais e uma concentração mais eficaz dos recursos (se cada doador tiver um programa de 100.000€, a eficácia é menor do que se 5 doadores se juntarem num programa de 500.000€), mas sobretudo reclamam que os países desenvolvidos acabem com apoios e investimentos em projetos que, em qualquer parte do mundo, aumentam as emissões de gases GEE.

Independentemente das nuvens negras que ensombram o futuro do Acordo de Paris, o que se passa em Marrakech nestas duas semanas devem encher-nos de esperança e de vontade de lutar, porque não estamos sós e somos mesmo muitos a querer um mundo melhor. Ao contrário de crises passadas, não fazer nada não é uma opção!

 

PS: Não me esqueci do efeito Trump, só penso que, tal como face a qualquer furação, a preparação e a resiliência poderão minimizar os danos até que se faça luz…

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