O manto de invisibilidade que cobre o racismo
O não-registo da cor da pele não só não protege os mais frágeis como esconde os crimes da discriminação racial.
Qual é a dimensão do problema da discriminação racial em Portugal? Manifesta-se em todas as áreas e em todos os sectores? Ou é um fenómeno excepcional? Só se manifesta em certas camadas da população? Só em relação a certas comunidades específicas? E de que formas se reveste a discriminação existente? Como responder a estas perguntas com seriedade, para além do mito de “Portugal sociedade não racista”, por vezes difundido com a melhor das intenções, para não propagar o preconceito, mas silenciador dos crimes e dos direitos e dignidade das vítimas e, por isso mesmo, discriminatório por excelência e perpetuador da injustiça?
A resposta oficial é que não sabemos. Não há estatísticas porque, tanto para o Estado como para as organizações privadas, não existem cidadãos com diferentes origens étnicas, diferentes religiões e diferentes cores de pele. Se perguntarmos às universidades portuguesas quantos negros, ciganos ou muçulmanos aí estudam elas não sabem responder e afirmam orgulhosamente que não sabem porque não recolhem esses dados em nome de uma política de “não-discriminação”. E a mesma coisa acontece se fizermos a pergunta a um grande grupo económico sobre os seus trabalhadores. A questão é que este não-registo não só não protege os mais frágeis como esconde os crimes da discriminação racial.
Há outras formas de responder a estas perguntas. Podemos perguntar aos elementos dos grupos que são objecto de discriminação. Aos imigrantes, aos negros, aos ciganos. Aí, as respostas são radicalmente diferentes do panorama oficial da não-discriminação. As histórias dos imigrantes ou dos cidadãos afro-descendentes portugueses não estão apenas recheadas de episódios de discriminação. São vidas de discriminação.
E há ainda outra maneira de responder a estas perguntas: olhar à nossa volta. A religião não se vê, mas a cor da pele é evidente. Basta olhar para os grupos de crianças que saem das escolas básicas e para os grupos de jovens que entram nas faculdades para verificar como os mais morenos se perdem pelo caminho enquanto se vão concentrando nos sectores mais pobres, nos empregos menos remunerados. A mesma constatação pode ser feita na sociedade em geral, nas empresas, nas cantinas, nas ruas. Ou, de forma ainda mais gritante, nos media, onde os portugueses não brancos e os emigrantes mais escuros têm uma conspícua ausência - a não ser quando se escreve sobre “bairros problemáticos”. Na televisão portuguesa os negros são ainda mais invisíveis do que as mulheres.
Que a discriminação racial é um problema real e grave em Portugal ninguém tem dúvidas. Mas a questão é escamoteada há décadas no discurso oficial, alimentando o mito do “Portugal não racista”.
Esta semana, o Comité da ONU para a Eliminação da Discriminação Racial deverá tornar público um relatório sobre Portugal, para o qual vários organismos estatais enviaram contributos. Mas 22 organizações de combate ao racismo queixam-se de a sua contribuição não ter sido pedida pelas entidades oficiais, o que significa que o retrato resultante irá provavelmente branquear a situação real.
A Lei contra a Discriminação Racial está actualmente em revisão. Até agora, tem sido inoperante, pouco mais do que uma peninha no chapéu do Estado português. Seria fundamental que a sua revisão, no mínimo, permitisse recolher dados sobre a origem racial e étnica dos indivíduos, de forma a trazer à luz do dia a discriminação existente e a pôr fim ao manto de invisibilidade que cobre o racismo em Portugal.
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