A democracia e o terror cresceram de mãos dadas
A Tunísia é o único país que conseguiu estabelecer uma democracia no rescaldo das revoluções da Primavera Árabe. Mas é também a pátria do maior número de guerrilheiros do Estado Islâmico e de alguns dos terroristas que atacaram a Europa. O que parece contraditório tem uma explicação: o terror entrou
A polícia alemã acabava de anunciar que encontrara o documento de identificação de Anis Amri, um tunisino de 24 anos, na cabine do camião que, dois dias antes, tinha entrado a 70km/h num popular mercado de Natal de Berlim, causando a morte a 12 pessoas. De férias na capital alemã, um compatriota de Amri, Sami Helali, médico de 28 anos, lê as últimas notícias no ecrã do seu telemóvel, enquanto toma um café junto à estação central de autocarros. “Tunisino, outra vez? Assim estes sacanas vão dar cabo da reputação do país”, diz. “Já tivemos uma redução brutal do número de turistas depois dos atentados em Tunes e em Sousse, no ano passado, e com isto cada vez mais pessoas vão associar-nos ao fundamentalismo islâmico. É revoltante! Temos tentado fortalecer a nossa democracia, mas estes assassinos só a querem destruir”.
Apesar da surpresa, Helali estava mentalizado para ver mais nomes tunisinos associados ao terror. A Tunísia inteira estava ciente dessa ameaça. Afinal, sete mil jovens saíram nos últimos anos do mais pequeno país do Norte de África para integrar as fileiras de grupos jihadistas como o Estado Islâmico ou a Ansar al-Sharia — três mil na Síria e no Iraque e cerca de quatro mil na vizinha Líbia. Outros 12 mil presumíveis radicais foram proibidos de viajar pelas autoridades nacionais.
Na Europa, Amri não foi o primeiro representante da diáspora tunisina a massacrar inocentes; em Janeiro de 2015, o franco-tunisino Boubaker al-Hakim, de 33 anos, ajudou na preparação da matança na redacção do jornal satírico Charlie Hebdo, em Paris, depois de ter lutado pela jihad no Iraque, entre 2003 e 2004, e na Síria; em 2013, em Julho, Mohamed Lahouaiej-Bouhlel, de 31 anos, residente em França mas natural de M’saken (este da Tunísia), também usou um camião para atropelar mortalmente 86 pessoas que festejavam o Dia da Bastilha na marginal de Nice. A estes juntam-se Seifeddine Rezgui, de 23 anos, que, em Junho de 2015, abriu fogo contra dezenas de turistas na praia tunisina de Sousse, e a dupla Labidi-Khachnaoui, treinada na Líbia para abater os visitantes do Museu Brado, em Tunes, em Março de 2015. Em conjunto, mataram 172 pessoas.
Não há um padrão comum no passado dos carrascos tunisinos: Al-Hakim era um conhecido jihadista há mais de dez anos; Amri nasceu numa família muito pobre e radicalizou-se nas prisões italianas; a Bouhlel, que se terá doutrinado através da Internet, não foram encontrados laços com células islamistas; e Rezgui era um universitário que poucos meses antes de cometer uma chacina ainda bebia álcool e consumia cocaína em festas.
O que faz então da Tunísia uma incubadora de soldados do islão? Helali aponta o dedo à Líbia, com quem o país partilha uma porosa fronteira de 400km: “Lá há imensas células terroristas e armas à solta”, diz. “Eles recrutam jovens na Tunísia, treinam-nos e depois enviam-nos para onde querem fazer ataques. As armas usadas pelos terroristas no ataque ao museu foram dadas pelo Ocidente aos rebeldes para combaterem contra Khadafi.”
A anarquia que se vive em Trípoli é, sem dúvida, uma das causas da ameaça jihadista na Tunísia, mas a culpa não morre solteira. O processo de democratização que se seguiu à Revolução do Jasmim — a revolta popular desencadeada em Dezembro de 2010, que culminou no derrube do ditador Zine el-Abidine Ben Ali — também abriu espaço ao crescimento do fundamentalismo.
Ao mesmo tempo que Tunes organizava as suas primeiras eleições livres, grupos salafistas abriam mesquitas e recrutavam adolescentes. Enquanto o mundo aplaudia a solidez política do país, por oposição às autocracias e guerras civis que eclodiram noutras nações árabes depois das revoluções, já se agitavam as bandeiras negras do califado. Quando, em 2015, os esforços do país foram distinguidos com o Prémio Nobel da Paz — na figura do Quarteto de Diálogo Nacional, uma plataforma democrática que agrega associações sindicais, empresariais, de advogados e de defesa dos direitos humanos —, milhares de tunisinos chegavam à Síria para travar a “guerra santa”. Um caminho iniciado muito antes da Primavera revolucionária.
O vazio religioso
Na Tunísia de Habib Bourguiba (Presidente de 1957 a 1987), não se viam burqas. Nem sequer discretos hijabs (os véus islâmicos que cobrem os cabelos das mulheres). O ditador baniu a Ez-Zitouna, o maior e mais antigo centro de ensino islâmico sunita, e nacionalizou todas as instituições religiosas. Nem os muçulmanos moderados eram vistos com bons olhos. “Esta política disseminou as bases seculares que ainda hoje regem a Tunísia, mas criou uma enorme frustração entre os muçulmanos devotos que deixaram de poder exprimir as suas crenças no espaço público”, diz Georges Fahmi, especialista da Chatam House em relações político-religiosas no Médio Oriente e co-autor da investigação “Mercado para a jihad: a radicalização na Tunísia”.
Quando Ben Ali chegou ao poder, em 1987, tentou usar a religião para legitimar a sua liderança: a emissora nacional passou a emitir a oração matinal, a Ez-Zitouna voltou a funcionar como universidade e foi dada amnistia a Rached al-Ghannouchi, líder encarcerado do partido Ennahdha, fundado em 1981 por um grupo de intelectuais islamistas inspirados pela Irmandade Muçulmana no Egipto, que defendia uma identidade islâmica para o Estado tunisino. Ghannouchi e o Ennahdha ainda vão ser importantes nesta história, mas não por agora. É que melindrado pela boa prestação dos islamistas nas eleições de 1989, Ben Ali voltou com a palavra atrás: prendeu milhares de apoiantes do Ennahdha e forçou os seus líderes ao exílio, tomou controlo das mesquitas e impôs a proibição do hijab e das vestes islâmicas. “Não era apenas uma guerra contra os islamistas, mas sim contra qualquer manifestação pública de religiosidade”, afirmou, anos mais tarde, Rached al-Ghannouchi.
Ao longo de duas décadas, todos os imãs foram escolhidos pelo Estado e a polícia interceptava todas as manhãs aqueles que acudissem às mesquitas para a primeira reza diária. “Os sermões de sexta-feira eram dedicados a enaltecer a figura do Presidente. Os imãs referiam-se a Ben Ali como Deus. Os fiéis odiavam que as mesquitas fossem controladas pelo Estado”, diz Yahya Chaker, 25 anos, estudante de Engenharia Informática e activista social em Tunes.
Nos anos 1990, com o Ennahdha fora de combate, surgiu uma nova corrente religiosa: o salafismo. O salafismo invoca uma interpretação literal do islão e apela a todos os fiéis que sigam o caminho dos seus antepassados corânicos (salaf al-salih). Deste corpo saíram dois braços: o teológico e o jihadista. O primeiro é apolítico e rejeita o confronto com o Estado desde que este permita a prática do islão. O segundo, que conhecemos hoje através das acções de grupos como a Al-Qaeda ou o Estado Islâmico, acredita na luta armada como forma de estabelecer o Corão como lei fundamental. “Ben Ali, desconhecedor da ameaça jihadista, deixou o salafismo teológico penetrar na Tunísia como alternativa apolítica aos seus inimigos do Ennahdha, através de reuniões, livros e emissões televisivas por satélite que atraíram muitos tunisinos ávidos de conhecimento religioso”, explica Fahmi.
O ex-Presidente tunisino parecia confortável com a presença dos pregadores barbudos, que até considerava úteis para a alienação dos seus detractores políticos. Contudo, por essa altura, já alguns tunisinos se tinham iniciado na jihad ao lado dos mujahedin (rebeldes islamistas) afegãos na guerra contra os soviéticos, nos anos 1980. Em 2000, essa unidade, liderada por Saifallah Ben Hassine, fundou no Afeganistão o Grupo de Combate Tunisino (GCT), pouco depois classificado como organização terrorista pelas Nações Unidas. Foram dois dos seus comandos que, a dois dias do ataque da Al-Qaeda ao World Trade Center, assassinaram o líder afegão antitaliban Ahmad Shah Masood. Em 2002, rebentaram com uma sinagoga na ilha tunisina de Jerba. E, um ano mais tarde, já reforçados com outros compatriotas radicalizados, alistaram-se nas forças islamistas que interpretaram a invasão dos EUA ao Iraque como uma guerra contra o islão. Os alarmes soaram em Tunes: Ben Ali aprovou, em 2003, uma lei antiterrorismo, prendeu mais de 2000 homens suspeitos de pertencer a redes jihadistas, entre eles Ben Hassine e outros 300 veteranos das “guerras santas”. Ainda assim, não conseguiu estancar totalmente a ascensão do salafismo.
Ao longo dos seus 23 anos de presidência, Ben Ali esteve enganado; o seu fim não estava nas mãos dos islamistas mas sim dos cidadãos esquecidos do empobrecido interior do país. Em Dezembro de 2010, Mohammed Bouazizi, um vendedor de frutas e legumes na remota cidade de Sidi Bouzid, fez o seu próprio corpo arder em protesto contra a violência policial e a inoperância do Estado, dando origem a uma cadeia de motins. Três semanas depois, o Presidente fugia com a família para a Arábia Saudita. A ditadura caía.
Entre os revoltosos, poucas barbas e túnicas se viram: aquela era uma revolta popular, não islâmica, mas os religiosos estavam à espera daquela oportunidade. Nos meses seguintes, somaram vitórias: Ghannouchi regressou do exílio, os imãs do regime foram corridos das mesquitas e mais de 300 presidiários com ligações a grupos considerados radicais foram libertados das prisões, entre eles Ben Hassine, que em Abril anunciava a criação da filial jihadista Ansar al-Sharia.
Inicialmente, as atenções viraram-se para o Ennahdha, os representantes do islão político. Porém, Ghannouchi provou desde o início que estava decidido a levar avante o compromisso democrático. “Ele ordenou aos seus apoiantes que não o fossem receber ao aeroporto no regresso do exílio por recear comparações com a chegada de Khomeini ao Irão durante a Revolução Islâmica”, diz Marc Lynch, especialista em política do Médio Oriente. A atenção do Ennahdha centrou-se completamente no campo político, deixando as actividades religiosas desprovidas de regulação. Mesmo após a esmagadora vitória nas primeiras eleições livres, em Outubro de 2011, o Ennahdha ignorou os apelos islamistas para a adopção da sharia, focando-se em assinar acordos com os seus adversários seculares. Desiludidos, os partidários do islão viraram-se para os únicos que podiam ocupar o vazio religioso — os salafistas.
Uma máquina movida a frustração
Sidi Bouzid, Outubro de 2012. Hamza, Hichem, Ali e outros jovens que participaram na revolução estão num olival nos limites da cidade a beber cerveja e a fumar haxixe. Foram forçados a comprar as bebidas no mercado negro, dado que as patrulhas salafistas tinham encerrado à força os dois únicos bares da povoação que vendiam álcool. Também partiram uma sala de jogos, uma loja de música e proibiram os casais de andarem na rua de mãos dadas. Desde então, a juventude de Sidi Bouzid, onde há pouco mais de um ano a revolta tinha começado, tinha baptizado aquele campo esconso como “Bar Azeitona”: era só ali que podiam alimentar os seus prazeres mundanos.
De repente, seis homens altos e encorpados, com barbas longas e túnicas brancas, saltaram de uma carrinha à entrada do olival. Os rapazes apressaram-se a apagar os charros e a esconder as latas de cerveja. A patrulha salafista, que pela envergadura das suas unidades mais parecia ter sido recrutada à porta de um ginásio do que numa mesquita, falou-lhes num tom ameaçador: “Nós sabemos bem o que estão a fazer. Já sabem que não são horas para andar na rua. Vão para casa e apareçam amanhã de manhã na oração.”
Este era o quotidiano nas cidades do interior da Tunísia nos anos subsequentes à revolução. Aproveitando-se do enfraquecimento das forças de segurança, que os tunisinos identificavam com a opressão exercida pelo regime anterior, as milícias salafistas impunham a seu bel-prazer os costumes corânicos. Os seus imãs eram empossados nas mesquitas entretanto desreguladas, sem que o Governo em Tunes fosse notificado. Segundo o Ministério dos Assuntos Religiosos, mais de cem templos escaparam ao controlo da tutela de 2011 a 2013, a que se somaram 189 mesquitas construídas clandestinamente. Rapidamente, os locais de culto transformaram-se em centros de recrutamento. E matéria-prima não faltava.
“Há uma grande diferença na Tunísia entre o litoral, próspero, e o interior, muito pobre. Nas cidades do interior e do Sul, não há campos de futebol, cinemas, teatros, bares nem qualquer estrutura para entreter os adolescentes”, diz o activista Yahya Chaker. “Então, resta-lhes dois caminhos. Primeiro, costumam entregar-se aos vícios, álcool e drogas, mas quando são apanhados pela polícia ou pelos pais, viram-se para a mesquita, o único sítio aberto para os receber. Os pais ficam descansados porque olham para as mesquitas como locais de paz, mas não sabem quem manda lá dentro. Quando são imãs jihadistas, os jovens são radicalizados num instante.” Os eclesiásticos tiram dividendos da frustração generalizada. “Muitos tunisinos acreditavam que a sua situação iria melhorar depois da revolução, mas, na realidade, pouco se alterou”, diz Georges Fahmi. A economia caiu, a indústria do turismo ficou mais débil e o desemprego jovem ultrapassou os 30%. “Muitos deles passaram a ver a promessa de mudança radical do sistema oferecida pelos salafistas como a única via para saírem do marasmo, ao mesmo tempo que adquiriam um sentimento de pertença a uma causa poderosa.”
Ali Laifi, um dos miúdos que estavam no “Bar Azeitona”, hoje com 21 anos, confirma essa realidade. Dois dos seus amigos foram recrutados para campos de treino jihadistas na Líbia. Ele resistiu. “Eles começam por distribuir livros e vídeos sobre o islão e a pregar contra os políticos. Depois, oferecem comida e chá, dão ajuda às famílias carenciadas e prestam apoio na educação e saúde. Fazem o que os políticos não fazem em Sidi Bouzid”, diz. “Para entrares na sua rede, não precisas sequer de ser um muçulmano devoto. Pelo contrário, as tuas convicções têm de ser mesmo muito fortes para não ires na conversa deles.”
Em A Psicologia do Terrorismo, o psicólogo forense John Horgan define as metas do recrutamento: “O papel mais importante de um recrutador é o de convencer os seus alvos de que podem atingir algo maior e melhor nas suas vidas.”
Anis Amri, o terrorista de Berlim, saiu deste contexto: nasceu no seio de uma família muito pobre em Oueslatia, uma pequena aldeia da região de Kairouan, onde aos 17 anos já tinha cometido cinco crimes relacionados com tráfico de droga e desobediência às autoridades. Não chegou a testemunhar a ascensão salafista: em 2011, no meio do turbilhão revolucionário, embarcou clandestinamente para Itália de modo a fugir à pena de prisão que já lhe tinha sido imposta. Contudo, a jihad acompanhou-o na Europa. Na ilha siciliana de Lampedusa, estavam outros 22 mil tunisinos recém-chegados. Entre eles, umas dezenas de salafistas acabados de sair das prisões de Tunes por amnistia decretada pelo Ennahdha. Iria encontrá-los nos calabouços sicilianos, depois de ter incendiado um centro de acolhimento de refugiados, já organizados pela batuta bélica da Ansar al-Sharia. Quando foi libertado, em 2015, Amri não só estava altamente radicalizado como levava consigo para a Alemanha contactos da rede jihadista germânica, em que se iria inserir nos meses seguintes. Um ano e meio depois, estava ao volante de um camião a cometer um atentado macabro.
Tunísia vs. Estado Islâmico
Parte dos tunisinos acredita que o Ennahdha patrocinou a escalada salafista. Outros, entre os quais a maioria dos analistas, acreditam que o partido dos Irmãos Muçulmanos se limitou a ignorar uma potencial ameaça jihadista. Inicialmente, Ghannouchi e os seus pares terão usado os salafistas para tirarem ganhos eleitorais. “Como estavam focados nos assuntos políticos, deram carta branca aos salafistas para se ocuparem das instituições religiosas, tentando calar as críticas e captar os votos dos islâmicos mais conservadores”, diz Georges Fahmi. Quando saiu da prisão em Março de 2011, Ben Hassine, conhecido pelo nome de guerra “Abu Ayyad al-Tunisi”, antigo criador do GCT e jihadista mais proeminente do país, anunciou que “a Tunísia era uma terra de preces e não de guerra”. A estratégia parecia alinhada, mas os islamistas moderados iam rapidamente perceber que não se pode confiar em pactos com o diabo.
Logo em Abril, Abu Ayyad criou a Ansar al-Sharia e pôs sob sua orientação dezenas de grupos islamistas a operar no país. Começou por organizar reuniões, comícios em praças e manifestações pacíficas. As suas esperanças eram que o Ennahdha optasse pela via da islamização da Tunísia, aproveitando a vitória eleitoral para fulminar a democracia, instaurar a sharia e punir todos os agentes ligados à ditadura de Ben Ali. Os jihadistas não estavam sozinhos — nessa altura, todo o mundo desconfiava das intenções do Ennahdha. Surpreendentemente, o partido enveredou pela via moderada. Os salafistas radicais, temendo um regresso às décadas de repressão, exaltaram-se. No final do ano, destruíram as instalações de uma estação de televisão por emitir o filme Persepolis, em que Alá é representado graficamente por breves segundos. Pouco depois, o próprio Abu Ayyad liderou um ataque à Embaixada dos EUA em Tunes, alegando o apoio americano a um filme crítico sobre a vida do profeta Mohammed. Cerca de 200 guerreiros radicais instalaram-se nas montanhas Chaambi, junto à fronteira com a Argélia, de onde desencadearam ataques mortais contra colunas do Exército nacional. Já em 2013, a Ansar al-Sharia foi acusada de orquestrar o assassínio de Chokri Belaid e Mohamed Brahmi, dois dirigentes de partidos liberais, com o objectivo de provocar uma crise política. A democracia tunisina resistiu estoicamente. Em Julho, o Governo considerou finalmente o grupo de Abu Ayyad uma organização terrorista, forçando o jihadista a esconder-se na Líbia. “A resposta das autoridades foi tardia”, diz Aya Chebbi, uma blogger considerada uma das mulheres mais influentes do país. “Quando começaram a perseguir os fundamentalistas, já eles tinham construído uma estrutura e uma massa de apoio que vai demorar anos a extinguir.”
Politicamente, o país assumia-se como um exemplo: em 2014, os islamistas perderam as eleições e aceitaram os resultados, cedendo pacificamente o seu lugar aos seculares do Nidaa Tounes, encabeçados por Beji Essebsi, um antigo ministro do regime ditatorial. Porém, os liberais receberam como herança uma ameaça latente. Apesar dos esforços para identificar suspeitos e voltar a controlar as mesquitas, os receios materializaram-se com os atentados de 2015, em Sousse e no Museu Bardo.
O parlamento tunisino não perdeu tempo: em Agosto do ano passado promulgou uma lei antiterrorismo que confere novos poderes de vigilância e detenção às autoridades. “A nova lei tem dado bons resultados”, afirma Yahya Chaker. “Antes, os candidatos a jihadistas podiam marcar uma viagem de manhã e partir para a Síria nessa mesma tarde. Com esta lei, todas as pessoas com menos de 35 anos que queiram fazer a sua primeira viagem necessitam de uma autorização prévia dos pais.”
A nova legislação tem, não obstante, permitido alguns excessos, como a detenção arbitrária e a tortura. “Hoje há uma espécie de trivialidade da tortura, especialmente em casos de terrorismo”, diz Amma Guellali, a directora da Human Rights Watch na Tunísia. “Quando falamos de tortura sobre suspeitos de terrorismo, somos considerados traidores na guerra sagrada contra o terrorismo; se denunciarmos essas práticas, somos considerados pró-terrorismo.” Uma reportagem da revista Foreign Policy (FP) revela que mulheres que usam hijab são chamadas “terroristas” na rua, e que dois menores chegaram mesmo a tentar o suicídio após meses de intensos controlos policiais por serem familiares de um membro da Ansar al-Sharia. “Com as técnicas de tortura, a polícia não vai acabar com o terrorismo, senão criar ainda mais terroristas”, disse à FP Rafik Ghaki, advogado de várias dezenas de suspeitos. Segundo ele, 70% dos seus clientes são libertados por falta de provas.
Nem a nova lei nem mesmo o desaparecimento de Abu Ayyad, morto num bombardeamento aéreo americano a um campo de treino jihadista na Líbia, fez baixar os níveis de alerta. Em Março, dezenas de rebeldes do Estado Islâmico tentaram conquistar a cidade de Ben Gardane, na fronteira com a Líbia. O Exército venceu a batalha, em que morreram 70 pessoas, entre as quais sete civis.
Agora, o Governo debate-se não só com a cobertura da raia mas também com o retorno dos jihadistas a casa, depois das experiências na Síria, no Iraque e na Líbia: cerca de 800 já regressaram à Tunísia. Em Tunes, ninguém os quer — na semana passada, já depois do atentado em Berlim, milhares de pessoas manifestaram-se na capital do país contra o seu regresso. A atitude das autoridades tunisinas também demonstra falta de vontade em acolhê-los: em duas ocasiões, não responderam às solicitações dos serviços de contraterrorismo europeus para a emissão das provas de nacionalidade de Anis Amri, necessárias para dar marcha à sua ordem de deportação. Só depois do atentado o Governo tunisino enviou finalmente para a Alemanha os documentos de Amri e procedeu à detenção de três suspeitos de cumplicidade com o terrorista, entre eles o seu sobrinho.
Para Fahmi, o aperto da segurança não pode funcionar sozinho: “Tal como as causas de radicalização são multifacetadas, também as formas de combate têm de incidir em vários campos, como o social, o político e o religioso”, defende. “O Governo tunisino deve permitir a entrada do salafismo na acção política, controlar as suas actividades nos espaços religiosos e criar centros de desradicalização para os retornados da jihad, ao mesmo tempo que fomenta o emprego e a economia e acode às necessidades das regiões mais remotas do país.”
A Tunísia pode ser um país pequeno, mas o seu futuro pode afectar toda a região e, consequentemente, o mundo. Por isso, acredita Fahmi, o Ocidente tem o dever de ajudar os tunisinos na sua luta contra o fundamentalismo islâmico. O país carrega as aspirações democráticas de milhões de árabes no Médio Oriente e no Norte de África. “Se a experiência tunisina falhar, só um modelo prevalece nas mudanças exercidas pela Primavera Árabe”, vaticina Fahmi. “É o modelo do Estado Islâmico.”