Eleições na Ordem dos Médicos – que futuro?

Avizinham-se mais umas eleições dos corpos directivos da Ordem dos Médicos (OM). No portal da OM, secção de História da Medicina consta:

“Nos seus primeiros estatutos ficou mencionado que a Ordem dos Médicos tinha por fim o estudo e defesa dos interesses profissionais. No capítulo dos direitos e deveres informava-se que era vedado o exercício da medicina a quem não estivesse inscrito nesta instituição.”

Em 2017 a OM mantém nos seus estatutos os objectivos originais desde a sua criação em 1938, com mínimas alterações. Vedar o exercício da medicina aos não inscritos continua a ser um objectivo principal da OM. Entretanto, a medicina evoluiu dramaticamente não só na forma como se pratica, mas também na forma como é interpretada pelos pacientes.

A OM precisa de uma reforma radical para se ajustar à medicina do século XXI e para manter a reputação dos médicos num mundo a evoluir rapidamente.

O conceito de “conflito de interesses”, por exemplo, só recentemente começou a permear as instituições portuguesas e, a meu ver, ainda não penetrou na estrutura e funcionamento da OM. Fundamentalmente, é importante separar as funções de protecção dos pacientes das funções associativas da OM.

Assim, as áreas das “inscrições” dos médicos, da manutenção de padrões profissionais (incluindo os colégios) e os poderes disciplinares deveriam ficar sob a alçada de um novo organismo, independente da OM, talvez à imagem do General Medical Council do Reino Unido, com participação de médicos eleitos pela profissão, mas também com elementos leigos, talvez eleitos entre representantes das muitas associações que zelam pelos interesses de doentes dos diferentes foros da patologia (diabéticos, parkinsónicos, etc.).

A Ordem tradicional ficaria com as funções associativas, olhando pelos interesses dos médicos, tais como produção da revista, o exercício do lobbying político, a organização de conferências e seminários, as ligações com o SNS, as ligações internacionais, a produção de relatórios sobre educação médica pré e pós-graduada, o repositório da história da medicina, etc.

Esperar que a mesma instituição que defende os interesses dos médicos ao mesmo tempo defenda os interesses dos doentes leva a flagrantes conflitos de interesse, sobretudo quando ocorre um comportamento repreensível de um médico. As funções disciplinares que potencialmente podem levar um médico a perder a sua inscrição na OM, e, portanto, perder o direito de praticar medicina, deveriam ser da responsabilidade do organismo independente como acima referido, em que pelo menos metade dos elementos não são profissionais médicos ou de outras profissões aliadas à medicina.

Outro aspecto importante da actual organização profissional dos médicos que também precisa de ser reformado diz respeito aos colégios das especialidades. Presentemente, os colégios não têm poderes executivos, apenas funções consultivas. Os poderes executivos estão todos com o conselho nacional da OM. Mas os colégios têm a responsabilidade de assegurar que os serviços onde os internos recebem a formação para especialistas são “idóneos” para o fazer. Os colégios são frequentemente chamados a participar em investigações de mau ou desastroso funcionamento de serviços, incluindo acidentes fatais, de uma ponta a outra do país. Fazem-no sem um orçamento específico, sem uma estrutura profissionalizada, em que os intervenientes possam ser chamados à responsabilidade, se a investigação não ocorrer satisfatoriamente. Os médicos que participam em investigações fazem-no voluntariamente, sem remuneração, portanto sem poderem ser responsabilizados. Por isso, muitos dos colégios têm nos seus gabinetes na OM pilhas de processos para investigar, tendo grandes dificuldades em encontrar especialistas disponíveis para o fazer.

Além dessas responsabilidades, os colégios também conferem os títulos de “especialista” perante um exame que ocorre no fim do internato da especialidade. Para fazer esses exames, os quais se processam largamente sem métodos objectivos de avaliação, os colégios dispõem de um orçamento mínimo e têm de recrutar examinadores, mais uma vez sem remuneração, mais uma vez baseados na boa vontade dos especialistas que se prestam a dar o seu tempo.

As funções dos colégios são extremamente importantes para garantir os padrões da medicina praticada pelos especialistas, isto é, praticamente de toda a medicina. Por isso seria largamente justificado tornar os colégios em instituições independentes da OM, com os seus estatutos próprios, cobrando quotas a todos os especialistas neles inscritos e que utilizam o título, e com um executivo eleito. Assim, os colégios teriam um orçamento para levar a cabo eficientemente as suas funções, podendo pagar a especialistas pelas funções desempenhadas em exames ou investigações e consequentemente despachar atempadamente os processos a seu cargo. Profissionais pagos para desempenho de tarefas específicas são sujeitos a obrigações diferentes dos profissionais em trabalho voluntário.

As reformas que acima sugiro não seriam fáceis de concretizar, mesmo que houvesse vontade. Todos os médicos inscritos teriam de ser ouvidos e teriam de as votar e o processo teria de passar pela Assembleia da República. Também seria de esperar que as outras ordens profissionais reagissem muito adversamente.

Mas para evoluir é preciso começar por algum lado e muitas vezes é necessário tomar decisões radicais. Idealmente, partiriam da própria OM. Contudo, nada acontecerá, se não for eleito um corpo directivo com vontade de o fazer.
 

DIC PhD FRCA, professor emérito da Universidade do Algarve

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