Ontem dormiu na rua, hoje tem uma chave de casa

Ter uma chave na mão e ter uma resposta para dar quando alguém pergunta a morada muda completamente a vida de quem há mais de duas décadas dormia nas ruas. Com o projecto É Uma Casa, Luís, Ana e José já saíram da rua.

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Luís*

Luís está sentado a uma mesa na Unidade de Atendimento à Pessoa Sem Abrigo (UAPSA), da Santa Casa, no Cais do Sodré, em Lisboa, à espera, e o pé direito não pára quieto. Está nervoso. “A casa tem televisão? Quantos canais?”, pergunta a Rita Pereira Marques, da associação Crescer. “E vou poder ficar com a chave?” Claro que sim, responde Rita. “É a tua casa, tens de ficar com a chave.” Luís sorri, como quem não consegue acreditar. Debaixo da mesa, o pé continua aos saltos.

Está concentrado. Sabe que, se tudo correr bem, este pode mesmo ser o primeiro dia do resto da sua vida. “Está muito frio. Dormi toda a noite debaixo de chuva”, diz, enquanto aperta o casaco fino em redor do corpo. Passou a noite no Terreiro do Paço, como acontece desde há muitos anos — tem 35 e desde os 16 que vive quase sempre sem abrigo permanente. Mas pode ter sido a última noite na rua. Hoje vai ser beneficiário do projecto É Uma Casa, que a Crescer começou a implementar em Portugal há exactamente quatro anos, inspirado no Housing First, que existe noutros países.

Lembras-te das regras?, pergunta Rita. “As regras são muito importantes.” Olhar fixo, directo para Rita, Luís vai enumerando devagarinho: “Não posso receber visitas. Não posso fazer barulho depois das dez da noite. Não posso levar ninguém para dormir lá em casa.” Continua a recitá-las. Conhece-as de cor.  

O assistente social que durante os últimos meses o acompanhou na UAPSA tinha dito que se calhar ele não se lembrava de que hoje era o dia em que ia para a sua nova casa. No entanto, assim que Luís aparece na unidade do Cais do Sodré, percebe-se que se lembra perfeitamente. Avança para cada um de nós com a mão estendida, apresenta-se, memoriza cada nome. Rita explica-lhe a presença de uma jornalista e pergunta-lhe se está de acordo. Acena que sim. “Vou aparecer no PÚBLICO?”

Daí a pouco estamos dentro do carro a caminho de Telheiras. Luís vai disparando perguntas. “De que cor são as paredes?” De repente, lembra-se de outra coisa: “Tenho de comprar uma escova de dentes.” E a seguir começa a falar da música que faz e pergunta se alguém tem telefone com acesso à Internet para podermos aceder à sua página de Facebook e ver os vídeos que colocou no YouTube.

Agora que tem casa, vai voltar a escrever música. Perdeu os cadernos onde tinha escrito as outras, mas tem tudo na cabeça e vai começar a fazer novas. “E ler, gostas de ler?”, pergunta Soraia, psicóloga da Crescer. “Gosto, gosto de ler.” E o quê? Luís, impávido: “Literatura grega.” Olhamo-lo, a resposta é, no mínimo, inesperada para quem tem vivido grande parte da vida na rua. Ele abre mais os olhos, não percebendo o nosso espanto. “Mitologia”, explica.

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Mas o que o preocupa agora é a televisão. “Tem cabo?” Não. “Não faz mal.” Daí a pouco entramos em Telheiras. Luís vai olhando pela janela do carro, atento. Tem de aprender os caminhos. “Há supermercado aqui? E mercearia dos indianos?” Decora onde fica a paragem do autocarro e a distância que tem de percorrer para chegar ao metro.

À porta de casa, Soraia passa-lhe as chaves para a mão e pede-lhe um segundo para tirar uma fotografia, mas quase não dá tempo. Luís acelera e abre a porta. Está ansioso. O prédio é novo, o apartamento cheira bem. Tem uma divisão, que faz de sala e quarto, e está decorado com móveis e objectos oferecidos por pessoas que colaboram com o projecto.

Uma cama junto à janela, um sofá em frente da televisão, um móvel branco para arrumar a roupa — por enquanto, Luís só tem a que traz no corpo, mas na UAPSA já lhe arranjaram mais um casaco, que ele há-de ir buscar mais tarde. Cozinha grande, toda equipada com máquinas novas, um pequeno armário no caminho para a casa de banho, com toalhas. Luís é muito rápido a ver tudo. Não larga nunca a chave. Volta a perguntar se pode ficar com ela.

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Por momentos concentra a atenção na televisão. O sinal não está muito bom. A imagem congela e isso está a criar alguma ansiedade. Toda a gente tenta mexer na antena e, de repente, a imagem aparece. E... desaparece. Enfim, terá de se ver melhor depois, reconhece Luís. Ainda vai ser preciso ir com ele até ao metro, ajudá-lo a carregar o cartão com dez euros e deixá-lo ir até Arroios a tempo de apanhar o almoço num dos centros de apoio.

Antes de sair de casa, há três ou quatro avisos a fazer. É preciso mostrar-lhe o protocolo que vai assinar com o presidente da Crescer e que o obriga a cumprir as regras da casa e a dar uma percentagem de algum rendimento que venha a receber para ajudar ao pagamento da renda. Rita explica-lhe tudo isto, diz que vão ajudá-lo a tratar dos papéis para poder receber um rendimento, certifica-se de que ele percebeu tudo e de que sabe que a coisa mais importante é aceitar as visitas periódicas dos psicólogos e assistentes sociais da Crescer. 

Luís continua acelerado, sim, já leu tudo, não tem dúvidas, decora as datas que ela vai dizendo. Primeira visita será já hoje às 18h. Ele repete e, de repente, sentado no sofá da sua casa, agarrado à chave que não voltou a largar, fica com o olhar no horizonte e pergunta: “Rita, acredita em Deus?” Uns instantes de silêncio e Rita responde que acredita em algo acima de nós que nos pode ajudar. E pergunta porque é que Luís se lembrou de Deus. “Sou católico. E porque é graças a Deus que agora tenho a minha casa.”

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Ana *

Quem não vive na rua não pensa nestes problemas, mas, para Ana, hoje com 50 anos, eles eram toda a sua realidade. E pareciam inultrapassáveis. “Passei os últimos anos a dormir nos respiradouros do metro da Praça da Figueira”, conta. “E eu, que sempre fui muito higiénica, andava toda suja. Só estava autorizada a ir ao balneário de Alcântara, mas não tinha dinheiro, não podia ir no autocarro sem pagar e a cheirar mal. Sou incontinente e não podia mudar de fralda, não tinha roupa para vestir e não podia ir às casas que dão roupa porque andava sempre suja.”

As distâncias parecem montanhas para quem não pode sequer pensar apanhar um autocarro. Foi precisamente por causa do problema dos balneários que conheceu Rita. “Eu estava a fazer um escândalo porque há um balneário na Praça da Figueira, mas é muito pequenino e não tem condições nenhumas”, recorda. “Eu não me sentia à vontade porque as mulheres andavam pela casa de banho e eu estava num cubículo a tomar banho e tinha de sair cá para fora para me vestir.”

Esse balneário tinha estado fechado para obras, mas Ana tinha ouvido dizer que já reabrira. “Estava toda suja, queria tomar banho”, explica. Daí o “escândalo” que estava a fazer. É que ao centro de Xabregas “não podia ir porque, com o cheiro que tinha no corpo, o homem do autocarro não me deixava passar. A única hipótese era ir de eléctrico, às vezes fazia isso, as pessoas olhavam para mim, mas eu punha uma capa de ferro, uma cara como se não fosse eu que ia ali. Habituei-me a pôr essa carapaça de ferro durante muitos anos”.

Estamos sentados na sala da nova casa de Ana, em Alcântara, onde se instalou há cerca de três meses. Mas desde esse dia do “escândalo” até chegar aqui muita coisa aconteceu. O melhor será começar a história pelo princípio. “A minha mãe morreu em 1985. O meu pai, que era militar, morreu passados dois anos. Eu tinha tido um esgotamento cerebral e, um ano depois da morte dos meus pais, a minha irmã suicidou-se.”

Restava-lhe um irmão, mas o facto de Ana ter começado a consumir álcool e drogas afastou-os. A casa, a que o pai tinha direito por ser militar, foi-lhes retirada depois da sua morte, e Ana, com vinte e poucos anos, viu-se na rua, onde iria passar a maior parte dos 27 anos seguintes.

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“Não falo com o meu irmão há cinco ou seis anos, desde a morte do meu companheiro. Eu tinha estado na rua, em várias situações. Em 1990 conheci o meu companheiro e passei a morar em casas abandonadas, mas sempre com a protecção dele. Dormimos na Av. da Liberdade, estivemos em muitos sítios.” A venda de uma casa de família rendeu-lhe algum dinheiro que Ana usou para pagar uma pensão. “Parámos com as drogas e deixei a metadona.”

Porém, quando o companheiro morreu, a situação complicou-se novamente e Ana voltou à rua. Nos últimos tempos, as coisas tinham-se tornado muito difíceis. “Tenho um problema na coluna e tinha dores horríveis nas costas por dormir em cima dos respiradouros de ar quente. Umas vezes temos cobertores; outras, não. Era uma grande confusão.”

Queria muito ter uma casa, mas nunca pensou que lhe iriam fazer uma proposta como esta. “Tinha era esperanças no meu irmão, que ele me viesse buscar e me levasse para perto dele. Agora, cair-me uma casa assim como a que a equipa de rua me deu, não esperava.” Desculpa-se por não nos mostrar o resto do espaço. “Não está muito arrumada, mas tem um corredor, tem a cozinha, a casa de banho e um quarto.” Na sala onde estamos, junto da porta de entrada, há um sofá, uma mesinha encostada à parede, duas cadeiras, um móvel com uma televisão e dois quadros com o Buda.

“Estou a adaptar-me à casa”, diz, e corrige logo de seguida. “Já estou adaptada, não estou é com muitos hábitos de trabalho ainda.” Explica que é complicado porque tem andado “muito triste”. “Agora que deixei de beber, que deixei a metadona e as drogas todas, lembro-me muito da minha família, do meu irmão, do meu companheiro que morreu. Estou a enfrentar tudo sem drogas e custa muito.”

Os beneficiários do programa É Uma Casa são, explica Rita, pessoas que já tinham passado por quase todo o tipo de respostas e tentativas de ajuda e que, por isso, estão muito descrentes em tudo. Ana confirma. “Estive algumas vezes em albergues, mas não dão privacidade nenhuma. Têm muitas regras e à mais pequena coisa põem uma pessoa na rua. Estive num centro psiquiátrico, ainda aguentei alguns meses, mas era horrível, tinha pessoas aleijadas, doentes mentais, um ambiente muito deprimente.”

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Quando saiu desse centro, a assistente social da Santa Casa arranjou-lhe um quarto numa pensão e entretanto contactou Rita para saber se havia a possibilidade de Ana entrar numa casa do projecto. “Depois foi tudo muito rápido. No espaço de 15 dias, entrei nesta casa, onde pago uma renda de 71 euros, da minha pensão, que é de 287 euros.”

Desde então começou a tentar organizar a sua vida, com o apoio de Rita, que vem duas vezes por semana ajudá-la na medicação e conversar um pouco sobre os planos para o futuro, e de Marcela, também da Crescer, que a ajuda com as questões mais burocráticas, como conseguir um passe mais barato ou inscrever a morada no cartão de cidadão. “Fazem-me companhia, porque sozinha é muito complicado. Foram muitos anos com o cérebro inactivo e estou com a cabeça cansada.”

Na véspera, tinha ido pela primeira vez buscar comida ao Refood. “Era boa, uma sopa de cenoura grossa, um refogado bom, com carne e batatas.” Vai ao supermercado fazer algumas compras, cozinha um pouco em casa, mas do que mais gosta é de ir ao café, tomar um café e fumar um cigarro. Quando vivia na rua, era impedida de entrar em todos os cafés da Praça da Figueira, mas aqui, no seu novo bairro, onde já diz bom-dia e boa-tarde aos vizinhos, pode ir tomar o café como qualquer outra pessoa.

Acha é que ainda passa muito tempo em casa. “É raro sair. Ponho-me a ver televisão porque me sinto sozinha. Não posso fazer muitas coisas porque a reforma é pequenina.” Mas, a pouco e pouco, começam a surgir ideias e planos. Rita conta: “Muito rapidamente, a Ana começou a pedir ajuda à equipa para ir tendo actividades. Disse que com a idade que tem não faz sentido não saber mexer em computadores e vamos começar com aulas de informática com um senhor do nosso grupo de voluntários que dá um programa de formação básica. E há ainda a possibilidade de a Ana entrar em aulas de ioga.”

Ana sorri. “Já fiz ioga, quando os meus pais ainda eram vivos.” Tem vontade de voltar e poderá conseguir a isenção do pagamento no clube. Gostava era que as aulas, que são das 19h às 20h, fossem mais cedo, para lhe ocupar mais a tarde. “A essa hora já costumo estar aqui a ver a novela.”

São tudo coisas novas e que se tornaram possíveis pelo facto de ter uma casa. No dia em que nos recebeu, tinha acordado muito cedo para tomar banho e arranjar-se. “Ao menos aqui posso tomar o meu banhinho de manhã quando me levanto e não estou sob a vista de toda a gente. Isso é que me incomodava muito.”

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José*

Atrasámo-nos uns minutos e quando chegamos a casa de José, também perto de Alcântara, ele espera-nos de pé e parece ansioso. Convida-nos imediatamente a conhecer a casa. A sala, por onde entramos, a seguir o quarto, depois a cozinha e uma pequena marquise onde está a máquina de lavar a roupa. Mostra-nos, orgulhoso, as cápsulas de detergente que usa e depois abre o frigorífico para mostrar como já preparou tudo para o almoço — dentro de uma panela está uma posta de peixe e algumas batatas descascadas prontas para serem postas ao lume quando for hora.

“Sempre gostei de cozinhar, sempre, nasceu comigo”, diz. Quando vivia na rua — desde os 17 anos, tem agora 55 — tinha um fogareiro e assava aí as suas coisas. Estava a dormir no Terreiro do Paço, em frente da estação dos barcos, que “era onde acendia o fogareiro”, quando a equipa de rua da Crescer um dia lhe perguntou se queria ir para uma casa. “A primeira vez não acreditei, pensei que estivessem a brincar comigo.”

Chegou a esta casa há um ano e quatro meses. “Trouxeram-me e fiquei logo. Não pensava viver numa casa. Nunca tive casa, senhora, desde os 17 anos”, repete. Albergues foi coisa de que nunca gostou. “Não quero ir para albergue nenhum, não gosto de estar fechado. Na rua sempre vivi sozinho. Conseguia organizar-me melhor.”

É um homem de Alfama, mas, diz, “hoje Alfama já não existe, é só casas de fado e restaurantes”. Apesar disso, no móvel da sala tem uma fotografia da Calçadinha de Santo Estêvão, em Alfama, junto a outra onde aparece ele próprio ao lado da carrinha da equipa de rua da Crescer, no Martim Moniz. O móvel está cheio de objectos que José vai reunindo, mas o que mais se destaca, logo acima da televisão, é o cachecol do Benfica. “Sou do Benfica, sim senhor. Há mil anos.”

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Aqui já criou também a sua rotina. “Às seis, sete horas da tarde já estou aqui. É meio, meio. Meio dia na rua, meio aqui. Quando há sol, em frente do cemitério, estou ali até o sol se esconder. No Terreiro do Paço era às oito horas, aqui é às quatro e quarenta e sete. Depois venho ver televisão, ver o Fernando Mendes.”

Tem uma pequena pensão, recebe algum dinheiro da junta de freguesia “para comprar legumes”, às vezes vende uma coisa ou outra que encontra na rua, vai até à esquina quando estão a distribuir comida. “Ainda ontem comi ali duas sopas. Boas.”

Há um ano e meio dormia em vãos de escada nos prédios da Baixa ou no Terreiro do Paço. Agora, José tem a sua casa e diz que vai ficar sempre aqui. “Está bem, a casa, está bem. É um tecto.” Ao fim de 38 anos.

*Para as três pessoas que são protagonistas das histórias aqui contadas, foram usados nomes fictícios. 

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