Ordens profissionais: ambiguidade e influência
Tem-se permitido que o Estado, sob a forma de ordens profissionais, não cumpra o seu papel de defesa do interesse do utente e haja abuso de poder
No âmbito da sociologia das profissões é comum dizer-se que a profissionalização de uma ocupação, ou seja, o fechamento do mercado de trabalho por um grupo de indivíduos com um saber exclusivo, complexo e de grande impacto na vida das pessoas (como acontece com o saber médico ou jurídico) passa por diversas etapas. A etapa culminante desse processo é a delegação pelo Estado da função de regulação profissional no próprio grupo. Entende-se que o Estado não consegue assegurar o bom desempenho de uma actividade com tais características pelo que se impõe um controlo pelos pares. Assim surgem em Portugal as “ordens profissionais”, ou numa acepção jurídica as “associações profissionais de direito público” que integram a administração autónoma do Estado (conforme a tese de doutoramento de Vital Moreira, 1997).
Portugal pertence por esse via a um padrão de auto-regulação profissional predominante na Europa continental e do sul (sobre os vários padrões leia-se a obra de Moran e Wood de 1993), mas também existente por exemplo no Canadá e no Brasil. Neste padrão, as organizações profissionais com poder de auto-regulação caracterizam-se por uma ambiguidade de funções. Se, por um lado, são criadas para serem entidades reguladoras, com o intuito de proceder à vigilância deontológica dos profissionais, por outro lado, ao assumirem a forma associativa e reunirem como sócios todos os profissionais, tornam-se associações extremamente representativas e grupos de pressão.
Ora, tendo as ordens profissionais um acesso privilegiado aos decisores políticos, como parte do Estado que são, muitos dos seus dirigentes intervêm na esfera pública exercendo influência e constituindo, não raras vezes, um obstáculo à emancipação de outros grupos ocupacionais quando não mesmo à concepção e implementação de políticas públicas. Lembremo-nos por exemplo do caso de uma ordem profissional que há alguns anos não reconhecia licenciados de cursos homologados pelo Ministério da Educação.
A visibilidade mediática de que gozam algumas das nossas ordens profissionais é notória. Essa visibilidade é em parte responsável pela crescente ambição de grupos ocupacionais a este estatuto de auto-regulação (veja-se o livro coordenado por João Freire em 2002 sobre associações profissionais). O facto de as ordens gozarem de prestígio social e, pelo contrário, as associações profissionais de direito privado (e de resto também as associações de utentes, por exemplo) nem sequer serem por lei necessariamente consultadas pelos poderes públicos, tem levado a que muitos grupos ocupacionais ambicionem a criação de uma ordem.
Um levantamento relativamente recente dava conta de existirem 10 grupos ocupacionais, para além das 17 tecnologias da saúde, com esse objectivo em curso: de topógrafos a urbanistas, passando por professores (em texto por mim publicado em 2013). De facto, importa ter presente que, se, do ponto de vista formal, uma ordem resulta da decisão de representantes políticos democraticamente eleitos, na origem dessa decisão está, efectivamente, a acção de pressão destes grupos, concretamente associações ou sindicatos, naturalmente com capacidades diferenciadas.
A Lei n.º6/2008 pretendeu pela primeira vez formalizar e uniformizar os princípios que têm estado subjacentes à criação das ordens profissionais. Revista em 2013 à luz do Memorandum de Entendimento (2011), que pretendia desregular o mercado de trabalho, a legislação não parece ter feito abrandar o intuito destes grupos. Hoje, basta um estudo de entidade credível (qualquer que seja a natureza ou desenho) e a permeabilidade da parte dos grupos parlamentares para se criar uma nova ordem profissional.
Assim, sem nunca se chegarem a discutir os vários modelos de auto-regulação possíveis, quando existem alternativas por exemplo em contexto anglo-saxónico, tem-se perpetuado o status quo. Tem-se permitido que o Estado, sob a forma de ordens profissionais, não cumpra o seu papel de defesa do interesse do utente e haja abuso de poder.
Com efeito, alguns bastonários não hesitam em assumir uma posição pública pessoal - justa ou não na sua essência não é o que cumpre aqui discutir – abusando da sua posição de poder. Ora, é sabido que assinar petições a favor ou contra determinada legislação, apoiar greves ou participar em manifestações motivados por interesses dos profissionais, como já sucedeu entre nós, não faz parte da missão de um regulador. O que é específico da sua missão é apenas, e não é pouco, zelar pelo interesse de todos os utentes.
A verdade é que acabamos por recorrer mais depressa aos tribunais ou à comunicação social para reclamarmos de um mau serviço profissional do que à ordem profissional que foi criada para zelar pelos nossos interesses. As ordens parecem continuar a entender, por exemplo, que a divulgação de sanções é má publicidade, mas como vão os utentes saber que elas podem usá-las?