Da legitimidade dos sindicatos para além dos números
Menos trabalhadores sindicalizados não significa necessariamente sindicatos menos relevantes.
A propósito do artigo de opinião de João Cerejeira e Miguel Portela no PÚBLICO de 4 de Setembro de 2017, gostaríamos de contribuir para o debate sobre a legitimidade dos sindicatos chamando a atenção para algumas ideias expressas de forma lacunar.
A qualidade dos dados continua a ser fraca. Aqueles autores citam os dados do Relatório Único, afirmando que “é agora possível medirmos com maior rigor a densidade sindical”, parecendo não ter em conta que o referido documento é preenchido pelo lado patronal. Ora, dificilmente os serviços de recursos humanos e ainda menos os gestores de pequenas e médias empresas saberão sempre se os seus trabalhadores estão sindicalizados. Essa não é uma informação que tenha de ser pública e, aliás, é de admitir que será por vezes ocultada perante o receio de ostracização. Os dados sobre a sindicalização do Relatório Único são, portanto, seguramente subestimados. Outras fontes existem e deram em tempos inclusivamente origem a polémicas académicas (vejam-se os artigos de Stoleroff e Naumann em reacção ao de Cerdeira na Sociologia Problemas de Práticas de 1993), mas todas apresentam limitações significativas.
No debate sobre representatividade sindical deveríamos ter presente que os sindicatos estão no direito de não facultar dados sobre os seus filiados como associações privadas e estratégicas que são e sobretudo tendo presente que, primeiro, o contexto lhes é desfavorável e, segundo, se lhes está a exigir algo que não se pede a outros. Importa ainda atentar que os sindicatos não são as únicas associações representativas, nem em Portugal nem na Europa, a se basear no critério de “reconhecimento mútuo”. Embora a Organização Mundial do Trabalho recomende a existência de critérios objectivos e predeterminados de representatividade dos parceiros sociais, eles são raros, conforme mostra o relatório da Eurofound de 2016, The Concept of Representativeness at National, International and European Level.
A representatividade não é apenas uma questão de números. A chamada “densidade sindical”, ou seja, a proporção de trabalhadores filiados numa organização sindical face ao total de trabalhadores potencialmente sindicalizáveis, é a medida de representatividade geralmente usada por actores sociais, académicos e decisores políticos. Não se trata, contudo, da única forma de aferir a representatividade sindical, como observava Henrique de Sousa num working paper do projecto Sociedade Civil e Democracia da FCSH de 2011.
Assim, quando se decidir mudar o sistema de representatividade sindical dever-se-ão considerar outos indicadores, quer qualitativos quer quantitativos, entre eles a “representatividade política” destas organizações, ou seja, medidas de aferição da congruência entre representados e representantes. Pois, mesmo que os sindicatos tenham poucos membros, ainda assim desempenham um papel de mediação fundamental, nomeadamente entre indivíduo e Estado, se efectivamente defenderem os interesses dos seus membros.
Menos trabalhadores sindicalizados não significa necessariamente sindicatos menos relevantes. É de admitir que a taxa de sindicalização tenha caído e, de resto, as próprias confederações sindicais portuguesas reconhecem que perderam membros, como noticiou este jornal por ocasião dos seus congressos. Há múltiplas razões para esse decréscimo: aumento do desemprego e dos contratos precários, incapacidade do sindicalismo em dar resposta a novos apelos, na medida em que se tornou numa estrutura burocrática com as inerentes perversidades, entre outras.
Mas, note-se, a chamada “crise do sindicalismo” não parece ser uma crise de confiança nos sindicatos, a julgar pelos dados do European Social Survey analisados por Lorenzo Frangi e outros em artigo do British Journal of Industrial Relations de 2017. Os autores concluem que a confiança nos sindicatos se estende para lá dos membros. Com efeito, como observam Cerejeira e Portela, os sindicatos continuam implantados em grandes empresas e no sector público, mas os autores desprezam que o seu impacto se estende para lá dos trabalhadores sindicalizados e de resto dos trabalhadores tout court. O fenómeno do free-rider, ou seja, o comportamento de quem beneficia sem pagar por isso, tão conhecido dos economistas e tantas vezes considerado para explicar a fraca filiação sindical, deveria nesta altura também ser convocado para o debate sobre o valor imensurável dos sindicatos.
Da invisibilidade das greves gerais. Perante o que foi exposto, consideramos que o número de greves, dias perdidos e mesmo o número de trabalhadores envolvidos em greve não são bons indicadores do poder dos sindicatos, ao contrário do que dizem os autores do artigo do PÚBLICO citado, e embora a tendência geral seja para o decréscimo do número de greves e se queira associar essa quebra à crise do sindicalismo. Aqui não optaremos por comparar países com muitas e poucas greves; cumpre-nos sobretudo chamar a atenção para o facto de em Portugal, no período de observação de Cerejeira e Portela, o número de greves gerais ter duplicado o número até então registado. É assim que Kurt Vandaele fala na “frente grevista do sul europeu” no seu artigo de 2016 na revista Transfer. As greves gerais, também designadas pela literatura como greves políticas por estarem em causa mais do que problemas laborais sectoriais, não podem ser desprezadas, embora os serviços do Ministério do Trabalho não pareçam admitir essa classificação.
Sindicatos prestadores de serviços e outras associações sem membros. Os sindicatos, tal como outras associações representativas, têm toda a legitimidade para se tornarem em prestadores de serviços. Não pomos em questão que essa seja uma função relevante nas nossas sociedades e que as organizações possam adaptar-se e assim desempenhar um papel importante na vida em sociedade. No entanto, os membros destas associações assumem na prática o papel de clientes e, por conseguinte, as associações tornam-se no que a politóloga Theda Skocpol chamou de “associações sem membros”. Ora, este não é o contributo diferenciador que os sindicatos podem dar nas nossas democracias e o papel de defesa de melhores condições de trabalho num quadro de justiça e igualdade sociais está longe de estar preenchido.
Em suma, “a utilidade dos sindicatos no futuro [não] deverá estar dependente da sua capacidade em aumentar a sua representatividade”, embora seja do interesse dos trabalhadores unirem-se para terem uma “voz” mais audível e autêntica e os sindicatos mais recursos para uma acção mais eficaz e independente. Como sustenta Richard Hyman na sua tese de geometria variável do sindicalismo, as fontes de poder dos sindicatos oscilam num triângulo cujos vértices são o mercado, a classe social e a sociedade. Para que lado penderão depende de todos nós.