Em 2050...
O problema da resistência a antibióticos, tal como o de muitas ameaças ambientais, diz respeito a todos nós.
Em 2014, uma equipa liderada pelo economista Lord Jim O’Neil publicou um artigo em que estimava que, em 2050, as bactérias resistentes a antibióticos matarão mais do que o cancro, a diabetes ou os acidentes rodoviários. Com a velocidade a que tudo avança no mundo em que vivemos é muito difícil fazer uma estimativa destas com grande precisão. Por essa razão, e por outras que têm a ver com os métodos utilizados pelos autores, várias foram as vozes que acusaram aquela visão de ser catastrofista. Talvez seja... Mas cumpriu o seu principal objetivo, fazer-nos pensar e, sobretudo, agir! Está a gritar-nos ao ouvido que ou agimos, todos e agora, ou será tarde demais.
Para compreender a ameaça que representam as bactérias resistentes aos antibióticos é preciso recuar 70 anos na história da medicina, altura em que os antibióticos começaram a ser utilizados com regularidade. A partir desta altura, e graças a muitos outros desenvolvimentos que foram surgindo em paralelo, a prática médica pôde aventurar-se por caminhos nunca antes trilhados. Hoje, os antibióticos são aliados, muitas vezes invisíveis, embora imprescindíveis, de grande parte das práticas médicas. Apenas para dar alguns exemplos, são usados a título preventivo quando se faz uma cirurgia, durante a terapia oncológica, após um transplante ou simplesmente quando se arranca um dente. Sem eles, a mais simples intervenção médica poderia estar condenada ao fracasso, pois o risco de uma infeção bacteriana, ou seja, a proliferação de bactérias no sangue ou nos tecidos intervencionados seria inevitável e acabaria por matar o paciente. Se as bactérias continuarem a adquirir resistência aos antibióticos à velocidade com que o têm feito nas últimas décadas é para essa situação que caminhamos.
Ao longo destes 70 anos, as bactérias acompanharam, com a habilidade que lhes é característica, as dificuldades que lhes foram sendo impostas. De facto, os humanos têm feito um cerco apertado às bactérias e em várias frentes — na medicina humana, na medicina veterinária e até na produção (mais rápida e mais barata) de animais para abate, destinados à alimentação humana. Em 2006, o uso de antibióticos para promover o crescimento dos animais destinados a consumo humano foi proibido na União Europeia, mas ainda é permitido em muitos países, muitos dos quais exportam carne, crua ou processada, para a Europa.
A verdade é que à medida que os humanos foram utilizando toneladas e toneladas de antibióticos para fazer guerra às bactérias, elas foram-se equipando com uma artilharia variada e versátil capaz de reagir a cada ataque. Esta estratégia defensiva tem sido tão bem-sucedida que hoje é cada vez mais provável uma pessoa contrair uma infeção bacteriana cujo tratamento não é possível com nenhum antibiótico disponível. O alargar deste cenário é o que faz crer que, em 2050, as bactérias resistentes a antibióticos possam matar mais do que as maiores causas de morte que hoje conhecemos.
A situação é, de facto, preocupante. A Organização Mundial da Saúde, bem como outras agências e autoridades internacionais, têm vindo a alertar para os perigos iminentes e para a necessidade de prevenir os seus efeitos. Diminuir o uso de antibióticos é umas das medidas mais urgentes e, ainda, ao alcance de muitos dos seus utilizadores. A proibição do uso de antibióticos na produção animal na União Europeia foi um começo, ao qual se aliaram outras medidas igualmente importantes na área da medicina humana. Por exemplo, as orientações que permitem fazer um uso mais prudente e parcimonioso de antibióticos ao nível clínico ou a proibição da sua venda sem prescrição médica têm vindo a ser implementadas com sucesso, embora possa haver ainda margem para mais melhorias.
A verdade é que graças a estes cuidados, o consumo de antibióticos na medicina humana tem vindo a diminuir em vários países europeus e nos Estados Unidos da América. Porém, a tendência contrária observa-se em países muito populosos como a China, a Índia, o Brasil, a África do Sul ou a Arábia Saudita que, entre 2000 e 2010, aumentaram consideravelmente o consumo de antibióticos. De facto, a situação global não está a melhorar, sendo que, nos Estados Unidos da América — um grande produtor e consumidor de carne —, o uso de antibióticos para acelerar o crescimento dos animais é ainda autorizado. Tal como o é em muitos outros países. Mas, mesmo quando não são usados como factores promotores de crescimento, os antibióticos continuam a ser muito importantes na produção de animais para consumo humano. Portanto, na realidade, são os animais, e não os humanos, os maiores consumidores de antibióticos.
Só para se ter uma ideia, em 2012, das cerca de 2000 toneladas de antibióticos consumidos na Alemanha, apenas 300 foram usadas em humanos, e em Portugal, das cerca de 240 toneladas usadas, apenas cerca de 80 foram para fins terapêuticos em humanos. Assim, a perspetiva é a de que em vários países o consumo global de antibióticos continue a aumentar ao longo da próxima década, sobretudo devido à previsão da crescente necessidade de produção de carne. Tal facto contribuirá certamente para agravar o problema da resistência a antibióticos que hoje enfrentamos.
A crescente necessidade de antibióticos é também um motor para intensificar a sua produção. Porém, os antibióticos há muito que deixaram de ser um produto premium da indústria farmacêutica. Para tornar a sua produção mais barata, a indústria farmacêutica tem vindo a recorrer a mão-de-obra pouco qualificada e mal paga e a encontrar formas de fugir aos requisitos de protecção ambiental a que qualquer indústria está obrigada nos países ditos desenvolvidos, designadamente no que se refere ao tratamento adequado dos efluentes industriais que libertam para o ambiente. Assim, muitas fábricas produtoras de antibióticos foram deslocadas para países onde a mão-de-obra barata se poderia aliar à ausência de regulamentação ambiental. A Índia tem sido um dos países mais procurados. O impacto que ali causam é dramático e vergonhoso — perto das zonas onde estão instaladas estas fábricas, a concentração de antibióticos na água que as pessoas usam para beber e cozinhar pode atingir concentrações mais elevadas do que as que são utilizadas para tratar pacientes! Nestas zonas, o risco de se estar a criar novos monstros de resistência é enorme. E, com a globalização, muito rapidamente se espalhará por todo o mundo. Já aconteceu no passado recente e, muito provavelmente, ocorrerá de novo. É apenas uma questão de tempo.
O problema da resistência a antibióticos, tal como o de muitas ameaças ambientais, diz respeito a todos nós. Temos o direito de conhecer os riscos que corremos e temos o dever de contribuir para os minimizar, não só para nosso benefício, mas também para o das gerações vindouras. Há questões a que temos obrigação de estar atentos e sobre as quais devemos fazer opções conscientes. Por exemplo, será que queremos consumir antibióticos que são produzidos sem respeito pelas regras básicas de protecção do ambiente e das populações? Será que queremos consumir carnes, processadas ou não, cuja produção pode ter contribuído para desenvolver bactérias resistentes a antibióticos? Este tipo de informação deveria ser facultada ao consumidor para que, em consciência, pudesse fazer a sua escolha.
Até é possível que novos antibióticos venham a ser desenvolvidos nos próximos anos. Porém, é previsível que os custos de investigação e de produção que tal implica, bem como a necessidade de restringir ao máximo a sua utilização de modo a evitar o surgimento de resistências, fará disparar o seu preço no mercado. Tais antibióticos serão tão preciosos que apenas os mais ricos poderão ter capacidade para pagar o seu valor e, assim, salvar as suas vidas... Esse não pode ser o caminho!
Há muito a fazer. À comunidade científica cabe investigar como pode ser combatido este problema, às autoridades cabe legislar e recomendar sobre o melhor uso dos antibióticos e o controlo da resistência, e aos cidadãos cabe o papel, não menos importante, de influenciar as politicas públicas e de decidir com consciência como pode contribuir para proteger o ambiente e a sua saúde e a dos seus descendentes.
Em 2050 poderemos estar melhor, e não pior, do que estamos hoje. Porém, é preciso unir esforços e começar a agir, já!
A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico