O apartamento

O edifício da Av. Luís Bivar é o resultado de um espírito neoliberal que encoraja a manutenção das fachadas em interiores totalmente reconstruídos. Foi isso que Medina comprou.

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A fachada de Norte Júnior foi engolida pela reconstrução Nuno Ferreira Santos

Qual é o grau de protecção que um edifício possui quando incluído no Inventário Municipal do Património anexo ao Plano Director Municipal de Lisboa? Se acompanharmos as notícias do jornalista José António Cerejo no PÚBLICO sobre o edifício de gaveto da Av. Luís Bívar com a Rua António Enes, onde se situa a actual residência de Fernando Medina, presidente da Câmara Municipal de Lisboa e candidato, não parece existir uma relação directa entre constar no inventário de 1994 e ser de facto tratado como objecto patrimonial da cidade. Porque, apesar de inventariado, de ter autor conhecido (o arquitecto Manuel Joaquim Norte Júnior, 1878-1962), os espaços interiores serem distinguidos pela existência de decoração mural e tratamento plástico... apesar de tudo isto, após a reconstrução que cresceu vários pisos — com um projecto do escritório GRAPHOS Arquitectos, fundado em 1986, e à época conduzido por Fernando de Castello Branco e Paulo Prazeres de Sá —, nada ficou do edifício inicial, a não ser umas fachadas exteriores.

O tom mais aceso da polémica — que envolve a compra do apartamento de Fernando Medina à família Teixeira Duarte — contrasta com o silêncio sepulcral sobre o pastiche da arquitectura do edifício que o aloja. Onde até à década de 90 do século passado exista um edifício habitacional e comercial de interesse colectivo, desenhado a partir de uma matriz cultural (própria da transição do século XIX para o XX), com urbanidade identificada, e onde sobreviviam interiores associados a tipologias residenciais historicamente conceptualizadas (que praticamente desapareceram em Lisboa), encontra-se hoje um prédio que presta um serviço ambíguo aos que defendem a presença da arquitectura na cidade.

É certo que o apartamento de Fernando Medina se localiza num prédio que não difere muito do que tem sido a prestação recente das equipas de projectistas que têm vindo a transformar a arquitectura corrente em Lisboa em ambiente tecnocrático, sem reflexão aparente sobre a paisagem urbana da cidade. Há décadas que legados arquitectónicos têm sido substituídos por novas construções — num processo natural e desejável —, mas que na capital só erra por não corresponder a uma estratégia de valorização patrimonial. Por defeito, um inventário é uma lista que deveria dar pistas para o futuro através dos itens que vai incluindo. Certo? Porque foi então inábil em proteger um espécimen ecléctico que mesmo degradado ao tempo da sua demolição constituía, segundo pareceres dos técnicos camarários, um exemplar a dignificar? E o que significou o seu desaparecimento para a memória colectiva de Lisboa?

O debate sobre a delapidação do património edificado das Avenidas Novas é um tema batido e tão velho que se tornou obsoleto há pelo menos 30 anos.

Desde cedo que arquitectos como José Luís Monteiro (1848-1942), Álvaro Machado (1874-1944) ou até mesmo Miguel Ventura Terra (1866-1919) têm sido mal amados pelos lisboetas e pela cultura arquitectónica nacional. Norte Júnior foi provavelmente o menos querido do grupo pela heterogeneidade estilística da sua obra, resultado de uma vida profissional longa (viveu quase 84 anos). A heterogeneidade tem sido pouco valorizada pela historiografia da arquitectura, o que também não tem ajudado à resistência de edifícios de autores dissemelhantes nas suas abordagens.

Mas Norte Júnior foi — como prova o elevado número de prédios que lhe são atribuídos —, o arquitecto das Avenidas Novas por excelência. Paulatinamente, com outros arquitectos, foi criando um cenário cosmopolita. Construções eclécticas e historicistas, reproduzindo os figurinos arquitectónicos das principais cidades europeias, continuaram a multiplicar-se no decorrer da primeira metade do século XX. Enquanto conjunto expunham um gosto tardio que se desejava “sofisticado” e era assumidamente burguês (ou aspirava ser). Os lotes das Avenidas não cresceram em simultâneo, não existindo verdadeiramente uma unidade estilística entre os quarteirões. Também a sua arquitectura não se destacava em edifícios singulares — apesar dos Prémios Valmor que se foram desmultiplicando pelas suas artérias (Norte Júnior ganhou pelo menos cinco) —, mas pela correnteza urbana que iam compondo.

Hoje, do eclectismo que marcou o arranque da ocupação das Avenidas sobram fragmentos, na maioria dos casos reconstruídos segundo a mesma fórmula do prédio de gaveto onde o presidente da CML habita. Ou seja guardam, o invólucro exterior, sem nada que permita reconstruir a sua espacialidade original. No domínio da salvaguarda do património, estas operações — que conservam do edifício primitivo somente vestígios das fachadas — situam-se no nível zero do debate sobre reabilitação. Os arquitectos modernos, por exemplo, preferiam abdicar de qualquer testemunho pré-existente, já que confiavam na superioridade do presente face à história e o passado não era mais do que um embaraço.

Os primeiros ataques à arquitectura ecléctica das Avenidas vieram portanto dos arquitectos modernos lisboetas que ostracizaram, depois da II guerra, por vezes de forma até violenta, os antigos mestres da geração anterior. Munidos de argumentos anti-ornamentação que copiavam de publicações estrangeiras (também em contra-ciclo e por vezes acriticamente), foram repetindo slogans a favor de uma nova arquitectura, desnudada de decoração e assente em exercícios geométricos, idealmente menos associados à burguesia. Datam deste período, os primeiros grandes abates da arquitectura ecléctica ao longo da malha ortogonal das Avenidas Novas. Mas pelo menos, os modernos não deixavam estilhaços de arquitecturas anteriores.

A modernização das edificações das Avenidas prosseguiu. Mesmo os académicos não se entendiam sobre o valor artístico e cultural da arquitectura ecléctica e o facto do plano urbano não regularizar uma abordagem estética, deixando o lote à criatividade do proprietário e do seu arquitecto, também não ajudou a uma hipotética promoção do ambiente urbano existente. Tudo se conjugava para que a arquitectura produzida por Norte Júnior e companheiros sobrevivesse somente em imagens publicadas em revistas como A Construção Moderna ou nas primeiras séries de A Arquitectura Portuguesa, entre outras. O que quase aconteceu.

Uma inversão do efeito predador moderno deu-se com o fortalecimento da sensibilidade culturalista pós-moderna, muito mais permeável às abordagens eclécticas (também elas de raiz culturalista). Também uma maior consciencialização sobre uma possível perda de identidade do carácter das Avenidas acabaria por favorecer um movimento pela preservação. Novas abordagens começaram a surgir, designadamente com a justaposição de linguagens arquitectónicas (o arquitecto Michel Toussaint chamou a atenção para o tema no semanário Expresso ainda nos anos 90 do século passado). Mas este movimento também não se daria sem aspectos nocivos. O antigo edifício de Norte Júnior na Av. Luís Bívar é o resultado literal de um determinado espírito neoliberal que encoraja desde então — em método collage — a manutenção das fachadas em interiores totalmente reconstruídos. Há uma linha de montagem já preparada que concorda que preservar equivale a manter (mais ou menos) a fachada preexistente. Como receituário agrada a todos: facilita investimentos, simplifica o desenho, cria a ilusão de uma cidade reabilitada. A olho nu, percebe-se que falta gravidade (urbana e arquitectónica) ao edifício que hospeda o apartamento de Fernando Medina. Talvez o micro escândalo – quando as eleições passarem — possa reacender o debate sobre o ambiente construído das Avenidas, o seu potencial patrimonial, o seu significado à escala da cidade. Porque não?

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