A nossa economia política é o trabalho
Não há relação mais política e onde haja mais investimento ideológico do que a laboral.
Há 150 anos atrás, em 1867, saía o primeiro livro de O Capital, da autoria de Karl Marx, que se tornaria uma obra central na história da economia política. A certa altura, Marx exorta o leitor a segui-lo “até ao lugar oculto da produção”, franqueando a porta que diz proibida a entrada a pessoas estranhas ao serviço. Só aí, onde se trabalha e cria valor, se tornaria visível para todos “como o capital produz, mas também como se produz ele próprio, o capital”.
Esta exortação mantém no século XXI uma grande actualidade em termos de método, de possibilidade de conhecimento, e em termos políticos. De facto, as relações laborais continuam a ser o elo central das sociedades capitalistas. Isto não impede, antes pelo contrário, que exista todo um esforço ideológico liberal para as ocultar. Mas de vez em quando, por denúncia de quem trabalha, o leitor tem um vislumbre do que se passa num tempo em que os freios e contrapesos legislativos e sindicais ao poder patronal foram enfraquecidos.
Recentemente, o PÚBLICO expunha o lado laboral oculto do só aparentemente glamoroso sector turístico, com o exemplo do que se passa nos barcos do Douro: “Salários baixos. Contratos maioritariamente temporários, quase sempre de três ou de seis meses. Sazonalidade. Jornadas laborais de 60 horas semanais. Contínuas. Folgas em plano b. Dormidas a bordo em espaços exíguos, sem privacidade. Refeições feitas de restos.”
Esta é parte da realidade que se esconde em muito do emprego que está a ser criado em sectores, como o turismo e a construção, caracterizados por elevada precariedade e baixos salários e onde o patronato vê a força de trabalho, aí intensivamente usada, como um mero custo a conter. Quando o custo social elevado de sermos a “Florida da Europa” no século XXI, com relações laborais do século XIX, se torna fugazmente visível, logo o comentário dominante procura instrumentalizar a situação. Insiste então no hábito de desviar o debate para o contraste entre a força de trabalho empobrecida e desorganizada e aqueles sectores onde os trabalhadores ainda conseguem manter alguma tradição sindical combativa, mesmo que tenham sofrido retrocessos no período da troika e do seu governo.
O jornalista Manuel Carvalho argumentou recentemente que a função pública monopolizaria o debate laboral, contribuindo para invisibilizar os problemas dos trabalhadores mais pobres (PÚBLICO, 13/09/2017). Pelo mesmo diapasão alinhou a jornalista Helena Garrido, mas agora no contexto da luta dos trabalhadores da Autoeuropa, comparando os seus aparentes privilégios, a sua suposta “bolha”, à situação de trabalhadores com horários ainda mais baralhados (Observador, 31/08/2017).
A sabedoria convencional, no fundo, procura sempre atirar os trabalhadores uns contra os outros, os do público contra os do privado, os novos contra os velhos, os precários contra os que conquistaram alguma, cada vez menor, estabilidade. Trata-se, no fundo, de dividir, enfatizando divisões horizontais e ocultando as mais importantes desigualdades verticais, para que quem está verdadeiramente em cima, o capital, possa reinar numa paisagem laboral também desta forma cada vez mais degradada. É a mesma ideologia que apoda de rígidas as regras que conferem algumas garantias aos que vendem a sua força de trabalho e de flexíveis as regras que conferem mais direitos e poder aos que a compram. De facto, não há relação mais política e onde haja mais investimento ideológico do que a laboral, nem relação que determine mais aquilo que os indivíduos podem ser e fazer. Por exemplo, é sabido, por vários estudos, que a precariedade laboral faz mal à saúde física e mental de quem é dela vítima ou que tende a gerar menos incentivos para incrementos da produtividade.
Neste contexto, é preciso assinalar que a existência de um movimento sindical combativo, em particular o organizado pela CGTP, se bem que enfraquecido e com desigual implantação, beneficia o conjunto do mundo do trabalho. Sabemos de resto, graças até a investigação do próprio FMI, que quanto maior é a presença sindical, menores são as desigualdades horizontais e sobretudo as verticais. Afinal de contas, quem colocou e coloca em cima da mesa questões como a actualização do salário mínimo ou a defesa da contratação colectiva, tão centralizada quanto for possível, ou não fosse a negociação cada vez mais individualizada, empresa a empresa, a melhor forma de acentuar desigualdades de poder e de recursos? Quem pode colocar em cima da mesa questões ocultadas como o banco de horas, esse expediente para desorganizar os horários de quem cria valor, corroendo no processo a vida familiar?
É por estas e por muitas outras que o mundo do trabalho organizado foi o principal alvo da troika. Negligenciando o sector financeiro e a crise por este gerada, a troika viveu obcecada com o desmantelamento da contratação colectiva, lançando mão de vários expedientes legislativos para esse efeito. Tudo para operar, também através do desemprego gerado pela austeridade, uma desvalorização interna, ou seja, uma maciça transferência de poder e de recursos de baixo para cima. Foi um “retrocesso evitável” para usar a formulação de um livro — Trabalho e Políticas de Emprego. Um Retrocesso Evitável — que descreve com objectividade e minúcia este processo. Um dos seus coordenadores, Manuel Carvalho da Silva, é uma das pessoas que melhor conhece os tais lugares ocultos de que falava Marx. Se um diagnóstico é metade do caminho andado, também existem alternativas. Estas passam por mobilizar toda a força social para convencer o governo a abandonar a passividade perante a pesada herança institucional deixada pela troika. Bem sei que tudo conspira na integração europeia para desvalorizar o trabalho, indicando que na economia política isto anda tudo mesmo ligado. Mas também sei que a actual solução governativa só se justifica pelas mudanças que operar nos tais lugares ocultos. A nossa economia política tem mesmo de ser o trabalho.