As mulheres de branco de Ghardaia

Estamos num universo com mil anos. A comunidade decide a vida do indivíduo. E as mulheres vivem, literalmente, sob um manto branco, ligadas ao mundo por apenas um olho. Ghardaia é o ex-líbris do vale do Mzab. O improvável exemplo de como do nada pode nascer tudo.

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Um olho. Um dos dois. E apenas um. É tudo o que podemos apreciar numa mulher ibadita — e é através dele que ela pode contemplar o mundo. Tapada por um virginal manto branco, nada pode estar visível para os outros. Nem as mãos. Esse secretismo ilustra muito bem o singular universo Mzabita (vale do M’zab).

“Esta é a sua garantia de pureza”, explica-nos, pacientemente, Hassissane. “E também a de que ninguém a aborda indignamente. Não sabendo quem está por detrás, não há quem arrisque. Já se imaginou mandar um piropo a alguém que pode ser a sua irmã ou a sua mãe? Impensável. Esta opção ajuda a manter a estrutura familiar como um pilar sólido da nossa sociedade.” O nosso guia em El-Atteuf é um homem pleno de certezas. Desta vez temos um guia. Aprendemos a lição. É vivido, inteligente e revela sentido de humor, que desaparece quando o tema central é o feminino mzabita.

O haik é a peça dominante na paisagem humana de Ghardaia. Impossível passar despercebido. São brancos anónimos que vão deslizando num palco surreal. O casamento é o momento da verdade para as jovens. Antes deste passo, geralmente decidido pelo conselho de 12 sábios que governa cada um dos cinco povoados que compõem Ghardaia, as meninas exibem os seus rostos dóceis, de feições infantis. Não se atrevem a falar com estranhos. Consumado o acto matrimonial, fecha-se a cortina: perdem boa parte da já parca liberdade e principia a existência atrás de um incompleto e fugidio meio olhar.

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Vista geral de Ghardaia

Quando a nossa curiosidade se fixa numa mulher ibadita, não é raro que esta ajuste o manto, fechando ainda mais o já de si pequeno buraco. Algumas, contudo, persistem nos gestos do passado: viram o rosto para a parede sempre que passam por um forasteiro. Ficam imóveis nas sombras. As outras é certo que desviarão o olhar.

Este mundo mais rígido é-nos servido de forma tão inesperada quanto intempestiva. Quando, em despreocupada deambulação por Ghardaia, as nossas objectivas descobrem um grupo de imaculadas jovens que abandona a escola, há alguém que perde a cabeça e nos aborda em descontrolado tom ríspido. Atravessa-se à nossa frente e, em incomodativa sofreguidão, interroga-nos, berrando. Que é proibido, que não o devemos fazer. Que Alá não ficará nada satisfeito.

Surpresos, escudamo-nos na nossa ignorância, mas os músculos do seu rosto não relaxam. Desculpamo-nos repetidamente. Indiferente aos nossos argumentos, genuínos, mantém a postura alterada durante mais um longo par de minutos. Aprenderemos algumas regras. E a grande lição: fotografar uma mulher ibadita — jovem ou casada — é um momento soberbamente fotogénico, mas interdito, reprovado e altamente censurado. Como se uma imagem dilacerasse mil anos de uma conduta social que pouco ou nada mudou.

Prevaricar sem saber

Esta explicação ajuda-nos a entender que já tínhamos violado uma regra fundamental. No vale do M’Zab, é impedida a visita ao centro histórico de qualquer uma das cinco cidades de Ghardaia (nome do povoado principal, mas também da aglomeração das cinco que ocupam uns compactos 75 quilómetros quadrados) sem estarmos devidamente acompanhados por um guia local.

Há uma rudimentar oficina de turismo — Associação de Orientação Turística de Ghardaia — que nos propõe uma visita guiada, mas o nosso interlocutor não é assertivo a indicar a obrigatoriedade de o fazermos com alguém da comunidade, que nos explique os valores e as regras ibaditas. No fundo, que nos situe nesta realidade tão diferente (depois do incidente, voltaremos a este modesto escritório, em atitude mais consciente).

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É possível fotografar as mulheres de branco, mas apenas com "luz verde" de um guia local

Antes de o fazermos, e quando procuramos dirigir-nos ao coração de Ghardaia, ao alto onde, invariavelmente, fica a mesquita, há quem nos pergunte pelo guia. Está sentado numas escadas e fá-lo como se fôssemos para si uma oportunidade de negócio. Pelo menos é assim que nos parece. Agradecemos, dizemos que preferimos explorar sozinhos e avançamos. O desconhecimento da rigidez das regras leva-nos a fazer analogias com o que acontece em vários países do Magreb, em que os improvisados guias não nos mostram o que queremos, condicionam a nossa experiência e, muitas vezes, se tornam uma verdadeira chatice — até que um punhado de notas os satisfaz e os faz desaparecer. Aqui não é nada disso. Mas não estávamos suficientemente documentados para o que iríamos encontrar. Esta viagem pela fantástica Argélia foi decidida — e planeada — em cima do joelho. Estimulante aventura ao ritmo do improviso. Seja como for, fica a indicação: a “orientação turística” de Ghardaia não só é obrigatória, mas igualmente muito útil para entendermos esta peculiar existência.

Deambulando pelas estreitas e labirínticas ruelas, nas quais rapidamente perdemos o Norte, vamo-nos cruzando, invariavelmente, por mulheres que à nossa vista se reduzem a um olho: umas mudam o seu caminho, algumas baixam a cabeça, outras quantas olham para a parede, ajustam o manto ou aceleram o passo.

Sentimo-nos como que anestesiados. Tento imaginar-me por detrás deste castrador branco, mas não consigo. Poderia procurar entender uma vida nesta penumbra, como é possível viver nesta prisão, não me fosse esse pensamento demasiado absurdo. Aqui vive-se como nas origens do islamismo. E só lamento não ter a oportunidade de falar com mulheres. Entender se sonham com outra realidade ou se são, elas mesmas, orgulhosas defensoras desta secular tradição.

Na nossa deslumbrada exploração, também encontramos crianças, jovens e adultos. E bastantes idosos. Curiosamente, ninguém nos aborda. Sabem que não devemos estar ali, sozinhos, mas não há quem nos faça sentir que estamos onde não devemos. A atmosfera serena que aqui se respira dita o nosso respeito: somos mesmo muito comedidos na hora de tentar registos fotográficos. Mesmo sem sabermos o quanto, sentimos que somos um corpo efectivamente estranho nesta tela. Que cativa. Inebria. Deambulamos numa outra época da existência humana. Somos alienígenas figurantes neste filme e temos a feliz noção disso. Poucas vezes uma experiência errante em lugar estranho é tão rica, instrutiva, balsâmica.

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As vielas de Ghardaia estão cheias de segredos

Códigos sociais imutáveis

Aprendida a primeira lição, é hora de sabermos um pouco mais sobre os ibaditas. Afinal, não tomámos o nosso descontrolado interlocutor por louco. Uma rápida pesquisa diz-nos que serão o único sub-ramo sobrevivente dos carijitas, o primeiro ramo a formar-se no Islão durante o cisma de 655-661 entre Ali Abi Ibne (xiita) e Moáuis ibne Abi Sufiane (sunita), cunhado e escriba do profeta. Inicialmente partidários de Ali, opuseram-me mais tarde às pretensões deste, bem como às do seu rival. Acabaram por dividir-se em vários sub-ramos, um deles o dos ibaditas.

Actualmente, são a maioria em Omã, mas no resto do planeta limitam-se a resistir em pequenos núcleos no oásis de M’Zab na Argélia, onde estamos, e nas ilhas tunisina de Djerba e tanzaniana de Zanzibar.

O indivíduo é apenas um grão na sociedade, que define boa parte do que é a sua existência. O que estuda, em que trabalha, com quem se casa, onde vive — são criados grupos de voluntários (touiza) para construírem as casas dos noivos — e como vive são algumas das situações decididas pela assembleia de 12 estudiosos (alqah) que administra cada um dos cinco burgos que compõem Ghardaia. Um conselho que orienta — ou cuida — a vida social e garante que os princípios milenares do Corão são fielmente seguidos, imunes à evolução dos tempos.

Os ibaditas são extremamente rigorosos, igualitários e… separatistas: nenhum membro de outro ramo do Islão — xiita ou sunita, por exemplo — é admitido numa sua mesquita. 

Seguem exactamente os princípios do bem comunitário e preservam-no acerrimamente. Com igual fervor ao que usam nas negociações, o que os faz dominar o sector financeiro, bancário e economia grossista. Têm mesquitas, cemitérios, actividades de recreação e desportivas próprios. Têm igualmente um sistema patriarcal de herança social.

O código de moral é profundamente estrito e o nível de pureza religiosa é extremadamente alto. Por isso, ninguém pode ter um casamento fora da comunidade, um dos motivos que justifica o facto de os ibaditas serem muito parecidos, um povo de feições deveras homogéneas. Normalmente baixos e entroncados. E face pequena e larga. As mulheres jamais deixam a comunidade, enquanto os homens podem ser encontrados um pouco por todo o país. Vestem cativantes sarouel el loubia, umas calças em balão com folhos. Identicamente se distinguem pelo seu peculiar chéchia, chapéu tradicional.

Não se encontram pedintes nas ruas nem há registos de roubos. Os ibaditas assumiram o seu destino. Talvez também por acreditarem que o mundo muçulmano não precisa de um líder global. Defendem que as comunidades se podem autorregular. E são o exemplo disso. Completamente opostos às crenças xiitas e sunitas.

Visitar Ghardaia é experienciar um autêntico “país” em si, com códigos sociais antigos, rígidos e imutáveis.

Ibaditas… mzabitas

Esclarecido o lado religioso, o cognome mzabitas explica-se pela região habitada, o vale do M’Zab. Estes ibaditas são originários do Norte do Magreb. Diz-se que fugiram de um fogo devastador, provocado por quezília religiosa com facção xiita, que destruiu tudo o que possuíam.

Rumaram então a Sul e refugiram-se nesta região há mais de mil anos, no século X. Chegaram a este vale um século depois, quando, por motivos de defesa, se realojaram na zona mais inóspita que conseguiram encontrar, também por motivos defensivos.

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Homens e mulheres desempenham papéis distintos nesta sociedade

Quando chegámos a Ghardaia, a lua já acompanhava o nosso longo trajecto desde Argel. Em todas as entradas/saídas das povoações há uma ou mais barreiras policiais. Aqui perdemos-lhes a conta. Os agentes da autoridade e militares estão por todo o lado. Uma presença bem mais intensa do que o normal.

Num parque, encontramos imensas carrinhas do corpo de intervenção. Conheceremos o soldado que as vigia. Apenas fala árabe. Deseja tirar uma foto connosco, mas logo nos pede, com gestos, para não a mostrarmos a ninguém. Não quer sarilhos.

Este dispositivo de segurança deve-se à determinação do governo em extirpar, de vez, a violência sectária com base étnica e religiosa que eclodiu em 2014. Os confrontos opuseram a população berbere ibadita, que se organizou para proteger as suas casas, famílias e lojas a grupos sunitas islâmicos árabes, que reclamam mais habitação e empregos. Gangues delinquentes fomentaram o conflito de identidade e aproveitaram o caos para saquear e outros actos criminosos. Houve violência, lojas incendiadas e vítimas mortais.

As autoridades de Argel enviaram unidades de reforço para a segurança local. Tudo mais calmo. Vivemos outros tempos. Com tanta vigilância, não sentimos qualquer tensão ou perigo.

As cidades fortificadas do M’Zab

M’Zab é um vale-oásis — dos maiores do Sara — profundo e estreito uns 600 quilómetros a sul de Argel, e que abrange as cinco terras amuralhadas, conhecidas por pentapolis, comprimidas numa fictícia linha que não ultrapassa os 10 quilómetros e estabelecidas pelos ibaditas berberes.

Ghardaia, Melika, Beni Isguen, Bou Noura e El-Atteuf. Juntas, costumam ser designadas Ghardaia. O crescimento, protagonizado por uns 100 mil habitantes, tem-nas aproximado, embora mantenham identidades bem distintas. 

Todas vivem envoltas em atraente secretismo. E merecem o nosso profundo apreço: não é fácil terem preservado a sua cultura original e a coesão entre as comunidades ao longo de mil anos, incorruptíveis pelo mundo exterior. Foi também isso que a UNESCO valorizou em 1982.

Ghardaia é o principal assentamento no M’Zab, enquanto a El-Ateuf é o mais antigo. Beni Isguene é o mais enigmático. A cidade sagrada da liga mzabita excluía, até há pouco, todos os não membros dacomunidade de algumas partes do burgo. E proibia os estranhos de pernoitar dentro de suas paredes. É famoso o seu mercado diário de leilões. Melika é povoada essencialmente por negros africanos, albergando grandes cemitérios. Bou Nouara, erigido sobre uma rocha que se sobrepõe ao leito do rio, é o mais pobre.

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O rio — que é tudo menos um rio

Cada uma das cinco povoações foi planeada sobre uma colina na qual pontificam edifícios cúbicos em tons pastel. Uma tela que se expande em círculos concêntricos ao redor de uma mesquita central, no alto, que pode ser avistada de todos os lados. No seu livro de 1963 (um ano após a libertação da Argélia do jugo francês), A Força das Coisas, a filósofa existencialista gaulesa Simone de Beauvoir descreveu Ghardaia como “uma pintura cubista lindamente construída”.

Nos centros históricos, destacam-se mesquitas com minarete em estilo pirâmide (funcionavam como torre de vigia) e uma praça com arcadas. E distintas casas brancas, cor-de-rosa e vermelhas, feitas de areia, argila e gesso, que se erguem em terraços e arcadas.

A mesquita é concebida como uma inviolável fortaleza, pois é o último bastião da resistência no caso de um cerco. Aqui se guardam armas e um celeiro capaz de alimentar os derradeiros heróis. 

As habitações foram pensadas e projectadas para uma existência em comunidade, em ambiente defensivo, privilegiando uma estrutura social grandemente igualitária que respeita ao limite a privacidade da família. Os edifícios parecem empacotados numa organizada prateleira, que respira através das estreitas vielas. Não há porta de frente para outra porta. E as chaminés nunca questionam o conforto do vizinho. Em todas as habitações há forma de ver para a rua, já o contrário é impossível.

A maioria das casas nas colinas têm dois andares e cada uma tem o seu próprio pátio, terraço e cerca. Há a preocupação de juntar a intimidade ao bem-estar da luz solar.

Por fora, prevalece o estilo austero. Igualitário. Por dentro, autênticas surpresas. O luxo pode ser extremo. Só entrando — ousámos e penetrámos numa casa a ser remodelada, com vários tipos de ostentação bem vincados — podemos perceber os segredos.

As ruas e os edifícios parecem harmoniosas obras esculpidas na encosta, misturando-se na paisagem. Ghardaia é um paradigma perfeito de como o engenho humano não precisa desfigurar a beleza da natureza, adornada pelo azul do céu e pelo solo avermelhado do deserto.

Cada aldeia foi fortificada de tal forma que eram inacessíveis aos grupos nómadas. E as residências são orientadas de tal modo que todas recebem luz solar. “Os habitantes de uma casa onde entra o sol nunca verão um médico”, diz um provérbio.

No Verão, os mzabitas mudam-se para improvisada cidadela fora das aldeias fortificadas, em ambiente mais informal no extenso palmeiral, onde também têm cemitério — as campas, igualitárias, não se distinguem entre si — e uma mesquita.

O coração de Ghardaia 

De olhos cerrados é como melhor sinto o forte pulsar em meu redor. Há gente, barulho, lojas e comerciantes nómadas oriundos de terras distantes. Estou no Azghar Ougharme, que significa fora da cidade, o emblemático mercado (souk) de Ghardaia. Situa-se na periferia sudoeste do ksar. Dizem que esta praça, rendilhada em toda a sua periferia por arcada comercial, foi fundada em 1884.

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Este histórico bulício é milenar. Aqui encontramos um pouco de tudo, mas destacam-se os tapetes e tecidos famosos na região, bem como especiarias e saudáveis legumes. Cerâmica, roupa e quinquilharias. Este cenário é imutável há demasiado tempo.

Apreciamos a azáfama e pregões que se espraiam também pelas ruelas que desaguam na praça ou que desta se espalham. Há comerciantes de rua, alfaiates, bordadores e quem se dedique a vender especiarias, sal, trigo, lã e até gado…  No passado, as diferentes áreas comerciais estavam mais segmentadas, agora tudo está mais disperso.

Em 1997, o mercado foi reabilitado pela primeira vez, com os cuidados de quem preza um dos principais locais para trocas e convívio. Antigamente, tinha uma área mais elevada para as orações e no meio tinha uma houita, umas pedras em semicírculo, de uns cinco metros, onde se sentavam os membros da assembleia dos notáveis para discutir os assuntos da comunidade. A intervenção corrigiu boa parte dos defeitos estruturais e lavou a face dos materiais desgastados pelo tempo…

A antiga mesquita de Ghardaia remonta ao século X, nos primórdios da fundação. De estilo mourisco, com torre simples e elegante, com uma abertura para ventilação. A decoração das mesquitas é praticamente inexistente: não precisam de sinais exteriores de riqueza. Geralmente, a sala de oração é sóbria e banhada por luz suave. Goza de uma frieza agradável. “Assim como a natureza nunca faz duas árvores iguais, o ventre da mesquita é composto de arcos irregulares e diferentes”, justificam-nos.

Arquitectura que inspira

Vários arquitectos do século XX vieram aprender ao M’Zab. Le Corbusier inspirou-se na mesquita Sidi Brahim, de El Atteuf, para criar a Capela Ronchamp, em França. Simples, prática e perfeitamente adaptada ao ambiente, a arquitectura do M’Zab atrai urbanistas e ganha prémios internacionais.

Ksar Tafilelt é um modelo, à escala global, de como 1000 anos de luta com a natureza podem derivar em projectos inteligentes que antecipam o futuro. Uma experiência humana profundamente especial, pelas suas abordagens social, urbanista e ecológica.

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Nos arredores de Ghardaia este projecto visa restaurar alguns costumes ancestrais baseados na fé e na auto-suficiência que permitem que oásis sobrevivam a meios hostis. Desta arquitectura milenar resulta agora em desenvolvimento sustentável, assente nas práticas e valores de coesão e assistência social mútua, em ideias da abordagem ecológica ou nos conceitos sustentáveis de arquitectura. Igualmente em padrões e requisitos do conforto da habitação contemporânea e trabalho de pesquisa sobre arquitectura bioclimática. Falamos de um complexo de 870 vivendas.

A arte de tornar o deserto fértil

Em Ghardaia não passa despercebido o rio eternamente seco. Raramente recupera leito. Uma dádiva dos céus que aqui pode ser um desastre, já que o curso serve actualmente como estrada, parque de estacionamento e até já alberga distintas estruturas. Uma confiança cega de que jamais virá bonança em forma de chuva regular.

Estes conhecedores do deserto percebem, como ninguém, a preciosidade da água, pelo que desenvolveram um sistema hidráulico exclusivo de túneis subterrâneos para aproveitar a chuva e desviá-la para os oásis. Planearam uma distribuição equitativa desse recurso natural e mantêm medidas de protecção contra enchentes. A seiva de toda a vida no vale chega através de mais de 4000 poços, perfurados a uma profundidade entre os 100 e os 150 metros.

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Um dos trabalhadores dos gigantescos círculos verdejantes

Juntamente com aperfeiçoados métodos de cultivo, permitiram criar um extenso palmeiral que sustenta, em termos de trabalho, boa parte da população entre Maio e Dezembro. Este palmeiral, que domina a paisagem, é resultado de conhecimentos milenares que têm trazido muita gente a Ghardaia para estudar a lendária luxúria dos jardins do desértico M’Zab.

São oito quilómetros de palmeiral — umas 60000 árvores — alimentado por poços cujas roldanas em funcionamento criam a chamada Canção do M’Zab, fazendo inveja a Moufdi Zakaria, poeta mzabita de Beni-Isgen que compôs o hino nacional argelino. Progressivamente, outra música se impõe, pautada por bombas a motor. Fruta, cereais e vegetais crescem sob as palmeiras.

Nos arredores, gravuras diversas mostram a presença de antigas tribos. Aqui, todo o cenário é inspirador.

Explorar o Sara

Dos mais emblemáticos do planeta, o deserto do Sara está a mudar. Não precisamos de nos afastar demasiado para encontrarmos, no meio de total aridez, projectos agrícolas em formas de gigantes círculos verdes que são vistos desde o espaço. 

Explorando o Sara uns 270 quilómetros para sul, El Menia alberga uma igreja católica em terra de ninguém. Mais do que o edifício, a impressionante história e viagens de um missionário numa época em que os perigos eram bem maiores e a mobilidade uma romântica ilusão.

Nos arredores, há paisagens imponentes capazes de apaixonar qualquer experiente fotógrafo. Há um lago e abruptas dunas sem fim. E um nómada e dois camelos a cruzarem, lentamente, o horizonte. Contemplamos. E registamos.

Nesta Argélia do sul os Verões são excessivamente quentes, com as temperaturas a poderem chegar aos 45º, enquanto os Invernos são serenos, embora os termómetros possam baixar aos 5.º. Esta terra inóspita também nos brinda com tempestades de areia, entre Março a Maio.

Todas as Primaveras, decorre em Metlili-Chaamba, a uns 30 quilómetros de Ghardaia, o Day Mehr: gente de todo o país junta-se para célebre corrida de camelos. Em Março e em Abril há um importante festival de tapetes.

Antropólogos, arquitectos, investigadores e historiadores sucedem-se neste fantástico M’Zab. Ávidos da sua riqueza cultural, antropológica e arquitectura singular. Ler este artigo é como contemplar a encantadora Ghardaia através de um único olho. Por que não fazer (já) a mala e experienciá-la com ambos?

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