Endireitar o Direito
Apesar da sua enorme importância, o Direito não surge no debate mediático com a mesma intensidade que a Política ou a Economia.
Falemos de Direito. O Direito é o sistema de princípios e normas passíveis de aplicação coativa que enquadra a convivência numa determinada comunidade. O objetivo é promover a certeza e a justiça nas relações humanas e a resolução pacífica de litígios, preservando desta forma a ordem social. O Direito existe em todas as comunidades; é-lhes inerente.
Apesar da sua enorme importância, o Direito não surge no debate mediático com a mesma intensidade que a Política ou a Economia. Quando surge, o enfoque está no sistema judiciário. Mas este enfoque é redutor. Vivemos o Direito todos os dias. Quando damos uma prenda ou compramos qualquer coisa. Quando cuidamos dos nossos filhos. Quando trabalhamos ou estudamos. Quando recebemos um subsídio ou pagamos impostos. Quando votamos. Quando criamos uma associação ou uma empresa. Tudo o que fazemos é, de alguma forma, juridicamente enquadrável.
Apesar da sua importância, o conhecimento jurídico tende a ser exclusivamente dos juristas. Mas o Direito releva para todos. Não pode ser domínio apenas dos juristas. Serão sempre necessários especialistas em Direito, porém, generalizar o conhecimento jurídico é imperativo. Neste âmbito, poder-se-ia ponderar, no contexto de uma reforma do Ensino Secundário, incluir no currículo noções básicas de Direito.
Nas universidades, mantendo-se a licenciatura em Direito (e não sendo transformado num mestrado), o curso deve formar pessoas que entendam o que é e para que serve o Direito, que entendam a razão de ser e as consequências das diversas soluções jurídicas possíveis, e que desde cedo se habituam a aplicar o Direito na prática. O ensino deve ter fortes bases teóricas e práticas e deve ser multidisciplinar, integrando áreas do saber como a Economia, a Política, a Filosofia ou a Sociologia.
Temos de assegurar a qualidade das leis. As leis devem ser redigidas numa linguagem clara e acessível e devem estar disponíveis a todos de forma simples e imediata. As leis devem ser estáveis, apenas sendo alteradas depois de algum tempo, já com muita experiência acumulada de aplicação. Para o efeito, em Portugal, a Assembleia da República e o Governo devem dotar-se, em número suficiente, de quadros técnicos qualificados para esta tarefa de produção e revisão legislativa.
É forçoso discutirmos a advocacia. Os advogados e as sociedades de advogados devem ser encarados e regulados como o que são: prestadores de serviços jurídicos, sujeitos a regras deontológicas. A ideia de que existe um conjunto extenso de atos que apenas podem ser praticados por advogados é difícil de justificar solidamente, pelo que se deveria ponderar o fim do crime de procuradoria ilícita. Em qualquer caso, a licença para exercer advocacia, a existir, não deveria ser atribuída por advogados, dado o inerente conflito de interesses. Poderia, por exemplo, ser atribuída pelos tribunais, mediante exame que teria lugar todos os anos, na mesma altura.
Chegamos aos tribunais. Existem em Portugal o Tribunal Constitucional, o Tribunal de Contas, o Supremo Tribunal de Justiça e os tribunais judiciais e o Supremo Tribunal Administrativo e os tribunais administrativos e fiscais. Podemos simplificar este sistema, ponderando, por exemplo, o fim dos tribunais administrativos, absorvidos pela ordem judicial. Deve existir um debate sério sobre o possível fim do Tribunal Constitucional e sobre a reforma do Supremo Tribunal, incluindo sobre a forma de seleção dos respetivos juízes.
Os juízes são titulares de órgãos de soberania, exercendo o poder jurisdicional. Devem receber formação multidisciplinar apropriada às funções que desempenham. Deve existir mais do que uma via para ser juiz e deve ser repensado o governo da magistratura judicial. As decisões dos tribunais devem ser devidamente construídas e fundamentadas, numa linguagem clara e acessível a todos. Deve ser assumida a relevância do precedente nas decisões judiciais, que acaba sempre por existir, ainda que de forma não assumida, e ponderada a relevância das decisões dos tribunais superiores, em especial do Supremo Tribunal, como guia das decisões dos tribunais inferiores.
O mapa judiciário deve ser pensado no sentido de otimizar o acesso aos tribunais, não de maximizar o número de tribunais. Por outro lado, as regras processuais devem ser simples e adaptáveis ao caso concreto, atendendo aos interesses das partes e ao julgamento do juiz, que deve ter um efetivo poder de adequação. A eficiência não é inimiga da Justiça, mas sim uma aliada. Apenas pensando em termos de eficiência podemos diminuir os custos do sistema judiciário, garantindo acesso generalizado (incluindo através de um bem calibrado sistema de apoios) e diminuindo os atrasos.
É preciso diminuir o número de litígios. Neste contexto, a intervenção de advogados, por exemplo, pode ser essencial, para esfriar emoções, promover negociações justas e uma redação correta e adequada de contratos. Mas caso surja um litígio, importa assegurar acesso adequado a meios alternativos de resolução de litígios, como a mediação ou a arbitragem. Podem ser bem mais eficientes que os tribunais. A este respeito, atente-se nos bons resultados da arbitragem fiscal.
Quando nos encontramos perante crimes, importa assegurar que o Ministério Público tem os meios e os poderes necessários para organizar a investigação e que os órgãos de polícia criminal têm formação jurídica adequada e contínua. Importa estabelecer expressamente o princípio da oportunidade, permitindo ao Ministério Público organizar os inquéritos de forma eficiente. E devemos minimizar o número de crimes e contraordenações ao estritamente necessário, ponderando devidamente os enormes custos advindos da criminalização de uma determinada conduta (veja-se o impacto positivo da descriminalização do consumo de drogas leves).
Muito mais haveria a dizer sobre o Direito e sobre cada um dos temas já abordados. Demasiadas vezes, o Direito apenas é discutido no contexto de uma ou outra decisão judicial que atenta contra o sentimento de justiça que nos é inato. Mas o Direito é bem mais do que decisões de tribunais. Desde que nascemos até que morremos, o Direito acompanha-nos sempre, ainda que, muitas vezes de forma invisível.
Vivemos, aliás, num Estado de Direito. O Direito organiza a vida dos indivíduos, das famílias, das associações, das empresas, dos Estados, da União Europeia e, cada vez mais, da própria comunidade internacional. O Direito é importante. E é preciso pensar o Direito de forma integrada, se o quisermos endireitar.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico
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