Será o socialismo uma ideia que ainda inspira?
Compreender o socialismo como um projeto de futuro implica que se tome o pulso ao seu significado.
Em Portugal, para o dizer de forma eufemística, a prioridade nem sempre é o debate de ideias. Se o tema de conversa for o “socialismo”, palavra tão associada ao nosso Partido Socialista, aos seus protagonistas, sucessos e insucessos, pode parecer algo extravagante que nos lembremos de perguntar: mas, afinal, o que é o socialismo? Ideia pejada de carga histórica, feita de contradições e evoluções, tantas vezes vilipendiada e atacada, desde as acusações do fracasso histórico do “socialismo real” à hipocrisia da “terceira via”, o que pode ela significar, nos dias de hoje? É óbvio que a atualidade desta questão não é alheia ao problema pragmático das dificuldades eleitorais da maior parte dos partidos socialistas europeus. De Espanha à Grécia, passando por França e Alemanha, os partidos com filiação socialista tradicionalmente fortes têm-se visto em dificuldades em anos recentes, e a “pasokização” é uma ameaça real que, aliás, contrasta hoje com a relativa tranquilidade do PS de Costa e a sua “geringonça” parlamentar. Do outro lado do Atlântico, a reivindicação de “socialismo democrático” por parte de uma figura tão interessante como Bernie Sanders não deixou de provocar calafrios em certa parte do eleitorado americano em 2016 e de nos recordar, a nós europeus, o quanto a nossa cultura política nos separa dos Estados Unidos.
Porém, compreender o socialismo como um projeto concreto de futuro, reivindicar a sua diferença específica face a um discurso neoliberal estafado e corroído, torná-lo de novo um ideal inspirador... implica que se tome o pulso ao seu significado, à sua força normativa, e que se avalie a sua tradição e práticas tendo em conta o contexto deste século e as mudanças em curso. É nesse sentido que aponta o último livro de Axel Honneth, A Ideia de Socialismo. Tentativa de Atualização, recentemente publicado pelas Edições 70 com um posfácio de Pedro A. Teixeira. Honneth, sucessor de Habermas na Escola de Frankfurt, é sobretudo conhecido pelas suas contribuições para a Teoria Crítica e a teoria do reconhecimento. Neste livro tenta perceber o que é que, no socialismo, tem força mobilizadora e fazer ver “o aparentemente necessário como coletivamente alterável”, isto é, a sua força utópica e transformadora que sempre fez do socialismo um contraponto do capitalismo nas suas formas mais selvagens.
Para levar a cabo esta tarefa, Honneth propõe fundamentalmente duas ideias. A primeira é a daquilo a que chama, de forma obviamente não pejorativa, um “experimentalismo histórico”. Partindo da constatação de que existem diferentes alternativas à autorregulação estrita do mercado capitalista, tal como a aplicação de um princípio cooperativo mais forte que permita um maior controlo por parte dos trabalhadores dos frutos do seu trabalho, ou a regulação mais apertada de instituições desenhadas pelo Estado, o ponto de Honneth é que têm de ser as experiências práticas a guiar o caminho do socialismo. Neste sentido, quer seja através de cooperativas, fundos de solidariedade ligados a sindicatos, ou da introdução de um rendimento básico incondicional, o importante é “demonstrar de forma convincente que os traços fundamentais do sistema económico capitalista ainda podem ser alterados, se não mesmo eliminados” (p. 95).
Esta proposta de controlo democrático enraíza na segunda ideia que Honneth propõe, a de uma “forma de vida democrática”. Parte da solução passa por assegurar que todos os indivíduos e grupos sociais envolvidos têm efetiva capacidade de participação democrática, ou seja, de fazer ouvir a sua voz e valer as suas reivindicações no jogo democrático. Para isso, segundo Honneth, há que abandonar a tentação de identificar o socialismo com os interesses de qualquer grupo particular, seja ele os trabalhadores ou o antigo proletariado. Em vez disso, é preciso compreender a rápida transformação da composição social das nossas sociedades e assegurar que a mensagem socialista pode ser apropriada por cada um; isto é, garantindo que, neste processo, ninguém seja discriminado em função da sua situação laboral (pense-se no extensíssimo precariado), ou de qualquer outra determinação (de género, racial, etc.). Por outras palavras, não estará assegurada a liberdade social se não for concedida a todos, na medida do possível, igual capacidade de participação.
Esta imagem de abertura e mutação do socialismo acaba por resultar na tentativa de recuperação de uma narrativa de progresso que possa efetivamente ser aplicada na prática e que permita perceber que há de facto alternativas, transformando ao mesmo tempo um ideal mobilizador numa prática de transformação. Talvez seja, por isso, altura de voltarmos a debater ideias.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico