Este filme é um desastre mas acabou por correr bem

Um Desastre de Artista, o filme de e com James Franco sobre a rodagem de The Room, o filme independente de 2003 que gerou um enorme culto por ser tão incompetente, chegou a Portugal. O Ípsilon falou com Greg Sestero, actor de The Room que escreveu o livro no qual o novo filme foi baseado.

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Greg Sestero, no Nimas em Lisboa, em frente a um e poster de The Disaster Artist, o livro que escreveu e no qual James Franco se baseou para realizar Um Desastre de Artista Nuno ferreira Santos

Tommy Wiseau não é uma pessoa como as outras. Um homem misterioso, veio de algures na Europa do Leste, provavelmente da Polónia, mas até há bem pouco tempo dizia que era americano de gema, de Nova Orleães. Munido do seu sotaque cerrado, que tem várias variações, tinha um sonho: ser uma estrela de cinema. Conseguiu atingi-lo, mas de uma forma bastante diferente daquela que tinha idealizado.

Em 2003, Wiseau escreveu, realizou, produziu, financiou e protagonizou The Room, um filme que teve duas semanas só em duas salas de cinemas – para se poder candidatar aos Óscares. Na cabeça do autor, era um drama sério à moda de Tennessee Williams. Quase ninguém o foi ver na altura. Dos seis milhões de dólares – cinco milhões de euros – que custou a fazer (ninguém sabe bem onde Tommy foi buscar o dinheiro), o filme só rendeu 1800 dólares – 1500 euros.

Os que foram viram um filme muito pouco competente, a quase todos os níveis, mas que os hipnotizou. As decisões tomadas por Wiseau, fossem técnicas, criativas ou simplesmente em termos de esbanjar dinheiro desnecessariamente, estavam totalmente à margem de tudo o que é a sabedoria convencional de quem faz filmes. Histórias e personagens são abandonadas a meio. As personagens não agem de forma minimamente lógica. 

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Os irmãos Dave e James Franco fazem, respectivamente, de Greg Sestero e Tommy WIseau em Um Desastre de Artista

É, verdadeiramente, arte marginal, diferente de tudo.

Entretanto, o filme acabou por conseguir o seu retorno. A palavra foi passando e The Room tornou-se um filme de culto. Ainda hoje há sessões um pouco por todo o mundo, em que o público se ri do filme. Entre outros rituais, os espectadores repetem algumas das citações mais bizarras de The Room, como “Porque tu és uma mulher!”, quando falam personagens femininas, a gozar com a clara misoginia anacrónica da história, com mulheres más a corromperem homens bons e inocentes. No filme, Wiseau é Johnny, um homem bom que está noivo de Lisa, que inexplicavelmente (ou por ser uma mulher) o trai com Mark, o melhor amigo de Johnny.

Os fãs também atiram colheres ao ecrã. É um gesto que celebra a bizarria de repetidamente aparecerem no filme molduras com fotografias de colheres, sem que haja uma razão para isso (Room Full of Spoons, o documentário realizado por Rick Harper em 2016 sobre The Room, vai buscar o seu nome aqui).

O próprio Wiseau é presença recorrente nessas sessões. E, retroactivamente, por causa da inesperada recepção ao filme, diz aos espectadores que, ao invés do grande drama americano que idealizou, queria mesmo ter feito uma comédia.

O amigo do artista

Em Outubro, Lisboa recebeu três dessas sessões no Espaço Nimas no encerramento das Sessões de Culto de Filipe Melo, que tinham começado justamente com The Room. Tiveram a presença não de Wiseau, mas de Greg Sestero. O actor faz de Mark no filme e a amizade com Wiseau, que se mantém até aos dias de hoje, começou nos anos 1990 numa aula de representação em São Francisco. Foi ele que inspirou o realizador a ir para a frente com The Room, tendo também sido o line producer do filme, uma espécie de chefe de produção. 

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Greg Sestero Nuno ferreira Santos

Em 2013, dez anos depois da estreia do filme, Sestero co-escreveu, com Tom Bissell, The Disaster Artist: My Life Inside The Room, the Greatest Bad Movie Ever Made, sobre a sua experiência a trabalhar no filme e a relação com Wiseau. Foi com base neste livro que James Franco realizou Um Desastre de Artista, filme que chega agora às salas portuguesas, depois de ter passado em Novembro no Lisbon & Sintra Film Festival.

Sestero conta ao Ípsilon que Tommy Wiseau gostou da adaptação de The Disaster Artist. Ainda assim, só aprova 99% do filme (é uma melhoria em relação ao livro, pois tem dito que só 40% do que Sestero escreveu é verdade), como tem repetido em entrevistas e no Twitter. Sestero dava duas hipóteses para o 1% de que Wiseau não gostou: a iluminação na primeira metade do filme e a maneira como uma bola de futebol americano é lançada. Num episódio de Novembro do talk show Jimmy Kimmel Live!com Wiseau e Franco como convidados (o mesmo em que Wiseau finalmente admitiu ser europeu e não americano de gema), Franco sugeriu que o comentário à iluminação se devia ao facto de Wiseau ver cinema com óculos de sol postos. 

Franco faz de Tommy Wiseau no filme e, segundo o que disse no talk show Conan em Dezembro, seguiu "o Método" e dirigiu o filme em personagem. Dave Franco, irmão de James, faz de Sestero.

O sucesso acidental

Sestero quis transformar o ter entrado num filme mau em algo bom. "O que é que posso fazer para me redimir?", foi a pergunta que fez a si próprio, como nos contou. Quis aproveitar a oportunidade para "mostrar que tinha algo a oferecer ao mundo". E, mesmo assim, tudo ter acabado por dar esta volta "foi um acaso". O actor de The Room e amigo de Wiseau mantém que sabia desde o início que o filme não iria ser o grande drama americano que Wiseau achava. Não só: Sestero nem era para ter aparecido no filme original, ainda que Um Desastre de Artista ignore essa parte do livro que escreveu. Wiseau tinha várias hipóteses de actores contratados para cada personagem e muitas pessoas foram sendo paulatinamente despedidas e substituídas. Foi só um de vários gastos supérfluos da produção, como o facto de Wiseau ter comprado as câmaras para a rodagem, quando é costume alugá-las e filmado em alta definição e película ao mesmo tempo, formatos que precisam de equipas diferentes. 

Em 2011, ainda durante o processo de escrita do livro, que na altura se ia chamar Locked Inside the Room, Sestero foi convidado do podcast  How Did This Get Made?, dedicado a maus filmes, filmes que caem na categoria de tão-mau-que-é-bom ou filmes simplesmente inacreditáveis. Os três apresentadores deste podcast cómico, Paul Scheer, June Diane Raphael e Jason Mantzoukas, aparecem no filme de Franco. Um Desastre de Artista está, aliás, recheado de cómicos em papéis pequenos. Nomes como Jerrod Carmichael, Hannibal Buress ou Keegan-Michael Key, já que The Room é muito amado por quem trabalha no mundo da comédia. Não são só cómicos: J.J. Abrams também aparece, a fazer dele próprio, a falar da importância do filme que começou isto tudo no início de Um Desastre de Artista.

O episódio foi relançado em Dezembro, com a junção de novas conversas de Scheer, que faz de director de fotografia de The Room, com Sestero e Wiseau, os irmãos Franco, os actores Ari Graynor e Seth Rogen, e os argumentistas Scott Neustadter e Michael H. Weber. Nessa nova conversa com Wiseau, Sestero disse que, ao escrever o livro, estava já a pensar num filme, em algo na onda de Ed Wood, a carta de amor de Tim Burton ao espírito indefectível de um mau realizador que mesmo assim acreditava, contra tudo e todos, naquilo que estava a fazer – Wiseau, por sua vez, proclamou não gostar de Ed Wood.

Sestero não aparece em Um Desastre de Artista a não ser em imagens de The Room que são recriadas, lado a lado, por Franco: “Fiz tudo o que pude para ajudar a produção. Tinha muito material da rodagem do The Room. Muitas fotografias, roupa desse tempo." O actor chegou a filmar cenas, mas acabaram por ser cortadas, porque houve partes do enredo que foram modificadas. "O filme todo é sobre a minha viagem, preciso mesmo de entrar nele?”, pergunta. Foi, conta, várias vezes à rodagem e sentiu-se a reviver as experiências, como uma cena em que Sharon Stone faz o papel da sua agente da altura.

Mas Um Desastre de Artista é a história dos dois. Em Novembro, num episódio de Kernels, um podcast do jornal britânico The Independent, Franco explicou que, para escrever o filme, foi buscar argumentistas que fossem bons a escrever sobre relações entre pessoas. Scott Neustadter e Michael H. Weber, responsáveis pelos guiões de (500) Dias com Summer ou A Culpa é das Estrelas, foram os escolhidos para darem uma carga mais forte à amizade que une Sestero e Wiseau, um que sabia que o filme que estavam a fazer era mau, outro que acreditava nele com toda a sua força e acabou por atingir, de uma forma totalmente diferente da que esperava, o estrelato.

Humanizar Wiseau

Depois de ver uma versão em bruto de Um Desastre de Artista, Sestero sentiu que o filme tinha humanizado Wiseau e decidiu escrever algo novo para ele. Best F(r)iends, que sairá este ano, foi realizado por Justin MacGregor e interpretado por Sestero e Wiseau. “Foi uma óptima experiência trabalhar com ele outra vez. Obviamente ainda houve caos, mas foi muito mais interessante. Era uma história que eu escrevi, por isso não havia tanto a parte de ele controlar a rodagem e então dava para usufruir mais da personalidade dele.” É que, tanto no livro como no filme, Wiseau é mostrado como sendo algo temperamental, especialmente na forma como trata a equipa e particularmente Juliette Danielle, a actriz que faz de Lisa (no filme de Franco, é Ari Graynor que tem o papel dela).

Tal como o livro, este filme vindouro está, diz Sestero, um pouco mais próximo das ambições artísticas do autor do que The Room, que é a visão de Wiseau. É uma história que não está relacionada com The Room, mas mesmo assim é feito com os fãs do filme em mente. “O público do The Room apoia-nos há 15 anos. Queria mesmo dar-lhes algo que fosse satisfatório para mim do ponto de vista artístico, mas mantê-los felizes.”

A humanização de Wiseau em Um Desastre de Artista, que é uma comédia dramática, faz-se com o facto de o filme, que tem um cameo de Wiseau a seguir aos créditos, não gozar diretamente com o homem. Tem um afecto genuíno por ele. É o mesmo que se passa nas sessões de culto de The Room. Sestero explica que acha que o público, com todo o seu riso e rituais, não goza com Wiseau: “Estão a gozar com o filme.”

Mesmo assim, é uma forma rebuscada de atingir o sucesso. "Eles celebram-no, mas não acho que seja na forma como ele quer. O filme foi um grande sucesso para ele, mas ele vê sucesso mais como estar nos Óscares ou trabalhar com Clint Eastwood. É isso que ele se vê a atingir ou a merecer, por isso pode ser um bocadinho frustrante.” Tommy Wiseau viaja à volta do mundo, a interagir com fãs que esgotam salas para o ver e “amam genuinamente esta coisa”, relata Greg. Mas depois, acrescenta, Tommy acaba por perguntar-se por que razão é que não está em “todos os filmes de acção grandes, nos grandes dramas”.

“É um sucesso que confunde. Para mim, a dinâmica é diferente, porque eu percebi o que isto era do início e tenho ficado fascinado com as pessoas aparecerem e responderem a isto. Estão a ver o que eu vi naquela aula de representação.”

Se a 23 de Janeiro, quando saírem as nomeações para os Óscares, Um Desastre de Artista for um dos filmes contemplados – e fala-se nisso, porque está nomeado para dois Globos de Ouro, um de actor para James Franco e um de Melhor Filme Cómico ou Musical –, Tommy Wiseau terá, mais ou menos, cumprido o seu objectivo. “Será uma proeza extraordinária. Ninguém acreditou nele. O The Room preparou o caminho, mas os Óscares acontecerão por causa do livro e do James e da equipa dele”, conta. “Não por algo que o Tommy tenha feito. É chegar lá, mas não da maneira como planeou.”

Já Sestero está perfeitamente tranquilo com isso. Apesar do sucesso ter vindo de algo considerado mau, diz ter aprendido a gostar de se manter no mundo do cinema "e continuar a ser criativo". "Conheço as probabilidades. Sei a realidade que está por detrás disto, das pessoas que conheço que tentaram ser actores. Tens de ficar grato pelo acaso e pelo sucesso que conseguiste", remata. 

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