A luta pela alma da democracia

É preciso que, desde pequenos, aprendamos que o mundo não acaba onde nascemos; que é nossa responsabilidade pensar por nós próprios, escolher como viver as nossas vidas e definir quem somos; e que temos o dever cívico de tentar compreender o que se passa à nossa volta e de intervir enquanto cidadãos, sem medo do debate, com base na nossa ideologia, mas partindo da realidade empírica.

Vivemos hoje tempos de luta pela alma da democracia. Os populistas, aproveitando a baixa satisfação com as instituições democráticas, procuram (mais ou menos sub-repticiamente) subvertê-las e vergá-las de forma a conseguirem, sem constrangimentos, implementar a sua agenda.

Estes populistas são democratas: defendem a soberania popular e procuram legitimar-se através de eleições e legitimar as suas medidas através de referendos. Mas veja-se o que aconteceu na Venezuela e na Turquia para ver o que acontece quando o populismo triunfa: as liberdades que damos como garantidas desaparecem e o poder, ainda que democrático, torna-se despótico.

Nesta luta pela alma da democracia, contra o populismo e as propostas demagógicas que tipicamente lhe vêm associadas, não podemos dar tréguas. Mas não basta, para tal, declararmo-nos democratas e antipopulistas. Neste momento, extremistas de esquerda e de direita declaram-se e anunciam-se como os verdadeiros defensores da democracia, contra a ameaça das “elites”.

A democracia moderna define-se pelos limites que impõe ao exercício da soberania popular. Esta é exercida, tipicamente, de forma mediata, através de instituições interdependentes (parlamentos, governos, tribunais, etc.) e é limitada pela vinculação do Estado ao Direito, incluindo a um conjunto de direitos fundamentais.

Numa democracia moderna, o exercício do poder é legitimado pela aceitação (ainda que passiva) do povo. Essa aceitação é importante, do ponto de vista da sustentabilidade política do quadro institucional da democracia. Mas esse poder, embora legítimo, não é ilimitado: existem freios e contrapesos para evitar que seja exercido de forma despótica.

A democracia moderna representa um compromisso entre o poder da comunidade e o poder do indivíduo. Os referendos, instrumento típico da democracia direta, são, assim, limitados, e sujeitos a regras de maioria e de quórum para serem vinculativos.

Os limites à soberania popular são essenciais para defender a liberdade individual e o direito à diferença. A mediação do exercício do poder soberano é essencial para promover que os temas tratados recebem o estudo e a ponderação devidos por pessoas com mandato e recursos (tempo e assessoria técnica) para o efeito. Os deputados, os ministros e os tribunais exercem o poder em nome do povo, mas devem agir de acordo com as respetivas consciências e mandatos.

Diz-se que Portugal tem sido imune a populismos. De facto, um sistema eleitoral e partidário bastante fechado tornam difícil a emergência de novos partidos, incluindo partidos populistas. Por outro lado, em Portugal têm continuado a existir alternativas (e alternância) de governo ao centro, mantendo aceso o debate político ao centro, o que serve de tampão à emergência de forças populistas (vemos atualmente na Alemanha um exemplo do contrário).

Fenómenos como a eleição de Marinho Pinto nas eleições europeias ou a potencial presidencialização do regime com base numa “presidência dos afetos”, mostram, no entanto, que não podemos, nem devemos, baixar a guarda. Não nos esqueçamos também dos baixos índices de confiança dos portugueses nas instituições, nem da elevada e crescente abstenção eleitoral.

É importante dar força à Assembleia da República e ao Governo e assegurar a existência de reais alternativas ao centro para evitar a subida dos extremos, como aconteceu na Alemanha ou em França. Os acordos ao centro, importantes para gerar continuidade e eficácia das políticas públicas, não podem, no entanto, colocar em causa a capacidade do centro para gerar verdadeiras alternativas de governo, servindo de âncora a diferentes configurações de maiorias parlamentares.

A luta contra o populismo passa pela conquista da confiança dos cidadãos nas instituições democráticas. Esta reconquista passa pela apresentação de novas propostas concretas de solução para os problemas sentidos pela comunidade, sem cedências a demagogias e a discursos hiperbólicos e maniqueístas, e pela defesa das próprias instituições democráticas, promovendo a sua integridade, transparência e a prestação de contas.

Não podemos deixar que sejam os populistas a definir as balizas do debate político. Veja-se, a este respeito, o que aconteceu no Reino Unido, relativamente ao Brexit, e o que vem acontecendo nos Estados Unidos, no que toca à eleição de Donald Trump. É imperativo, neste caso, que as forças do centro político não cedam a tentações nos seus extremos, mantendo a defesa de valores comuns, estruturais à democracia moderna em que vivemos.

O populismo divide a comunidade em dois grupos estanques, que qualifica como antagónicos: povo e elites. Na realidade, as elites não são (nem devem ser) estanques numa democracia moderna e, principalmente, numa república. Qualquer ser humano pode ascender à grandeza, e a promessa da democracia moderna é a possibilidade de ascensão social e de melhoria paulatina das condições de vida. A esta ideia estão associadas duas outras: a liberdade individual e a igualdade de oportunidades.

Mas apregoar grandes princípios não basta. É preciso materializar esses princípios numa agenda reformista e deixar de tentar, sistematicamente, ludibriar as pessoas, prometendo o impossível. A demagogia do impossível deve ser deixada para os populistas, desmontada e combatida. O combate a esta demagogia faz-se com políticas bem estudadas e com avaliações de impacto das políticas já implementadas. Faz-se prometendo políticas razoáveis e exequíveis. E o simplismo do populismo contrapõe-se destilando conceitos complexos em ideias simples, de forma apelativa. No centro esquerda e no centro direita.

A concretização das promessas da democracia moderna passa pela defesa e afirmação, tenaz, do humanismo, do indivíduo, da liberdade, da igualdade, da defesa da diversidade, do Estado de Direito, a promoção do bem-estar e do progresso económico, do progresso científico e tecnológico, da justiça entre gerações, e da descentralização e desburocratização. O ensino obrigatório deve servir para formar cidadãos, com o máximo rigor e exigência para todos, e com uma abordagem transdisciplinar. Isto implica desligar os resultados dos exames nacionais do acesso à universidade, uma revisão profunda dos programas do ensino básico e secundário e o fim das ‘especializações’ estanques que agora ocorrem no final do 9.º ano.

É preciso que, desde pequenos, aprendamos que o mundo não acaba onde nascemos; que é nossa responsabilidade pensar por nós próprios, escolher como viver as nossas vidas e definir quem somos; e que temos o dever cívico de tentar compreender o que se passa à nossa volta e de intervir enquanto cidadãos, sem medo do debate, com base na nossa ideologia, mas partindo da realidade empírica. Neste domínio, pode ser considerada a idade de voto para os 16 anos e deve existir uma reforma profunda dos partidos políticos e das juventudes partidárias, no sentido de fortalecer a sua vertente educativa e formativa.

Tomamos por garantido o equilíbrio entre o espaço de intervenção da comunidade e a liberdade de cada um de nós que a democracia moderna nos proporciona. Mas esse equilíbrio não é garantido. Tem de ser defendido todos os dias. O populismo anda por aí, e os realinhamentos políticos no mundo ocidental são bem visíveis; e menos visíveis, mas não menos relevantes, são as intervenções russas no processo político ocidental.

Portugal não é imune ao populismo. Na atual luta pela alma da democracia, não podemos distrair-nos e baixar a guarda da defesa da democracia moderna e de todas as suas conquistas. Sob pena de rapidamente deixarmos de ser, no contexto europeu, a exceção que confirma a regra.

 

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