Folk para chá, gatos e lareira

Uma estreia abençoada.

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Haley segreda-nos ao ouvido as suas dúvidas e angústias

Não será isto que vai encher-lhe a conta bancária, insuflar-lhe o ego ou fazê-la saltar para as primeiras páginas dos jornais, mas I Need to Start a Garden, a estreia de Haley Heynderickx, já alcançou um feito de tomo: entrar para a mais bonita folha de Excel do mundo ocidental, a saber, a minha Linda Lista de Lindos Discos Folk. E é quase um milagre que o tenha conseguido, já que Haley teve de gravá-lo três vezes e pelo meio enfrentou uma antipática bancarrota financeira que a deixou sem forças e sem confiança. Mas não sem humor, como se nota em Oom sha la la, a canção de onde ela retira a frase que intitula o álbum. É um pequeno milagre, Oom sha la la, um hit no mundo das pessoas que falham e se esgadanham – Haley abandona a guitarra acústica em favor de uma elétrica picadinha a criar tensão, em fundo há coros, enquanto a voz, esganiçada, oscila entre o riso e o quebranto e ela canta, com admirável humor existencial: “The milk is sour/I’ve barely been to college/ And I’ve been doubtful/ Of all that I have dreamed of/ The brink of my existence essentially is a comedy“, até chegar à resolução dos seus problemas, berrada com toda a força: “I need to start a garden/ I need to start a garden/ I need to start a garden/ I NEED TO START A GARDEN”.

Oom sha la la, com a guitarra eléctrica de contornos quase indie, acaba por ser quase uma excepção num disco em que o que salta de imediato aos ouvidos é o meticuloso labor colocado na complexa interligação entre voz e o rendilhado folky da guitarra: I Need To Start a Garden soa (mesmo quando ela se deixa acompanhar por vários instrumentos) a disco de pessoa solitária a falar sozinha; até certo ponto um disco de pessoa solitária com voz fininha a falar sozinha — mas quando ocasionalmente se amotina também sabe rosnar com uma fúria de invernos. O mencionado labor de voz e renda de guitarra está encapsulado em No face, a faixa de abertura, admirável pela economia da sua linguagem: voz, guitarra e uma letra brilhante, em que ela pede a um (ex?-)amante que lhe diga o que há de errado em si, numa enumeração tão triste quanto cómica: “Tell me what’s wrong here/ Is it the bridge of my nose/ Or the backs of my skin/ Is it the pull of my hips/ That you couldn’t let in”. É como se Haley, ao recorrer ao prosaico, quisesse impedir que a sua introspecção caísse numa tragédia caricatural. E se há por aí muita folk existencial, com este grau de auto-consciência e de beleza é que não: em The bug collector e em Jo os violoncelos pontuam uma angústia reminiscente de Nick Drake; em Show you a body, uma valsa em strumming de guitarra leva-nos ao crescendo final, em que ela repete “I am humbled by breaking down”, realçando a obsessividade que subjaz a algumas letras. Nessa “pequenez”, nessa mesura, é um disco para beberricar chá junto à lareira, com o gato ao colo; mas aqui e ali vem borrasca da grossa — como na nomeada Oom sha lala mas também na valsa agitada de Untitled God Song, em que tudo se amotina, sopros, metais, guitarra, bateria, todos juntos congeminando uma grandeza inaudita. Pressente-se que um dia Haley gravará todo um álbum com o amplificador no 11 mas por agora prefere segredar-nos ao ouvido as suas dúvidas e angústias que ocasionalmente se fazem acompanhar de uma chuva miudinha.

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