Contista de um conto só

Historian é um manual de college-rock.

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Lucy Dacus: exercício de replicação geométrica do college rock

Nos tempos em que o single era rei e havia páginas e páginas nas publicações culturais dedicadas a encontrar a próxima capaz de encantar uma geração, isto seria muito simples: citava-se a letra completa de Night shift, a canção de abertura de Historian, o segundo álbum de Lucy Dacus, analisava-se um par de frases por via a demonstrar a sageza na arte de depurar o remorso amoroso auto-consciente e pejado de auto-depreciação, alinhavavam-se umas linhas dedicadas a analisar a mestria da guitarra, ressalvava-se o assomo épico aquando da entrada da distorção, aquele u-uh final, a subida de uma oitava quando ela diz “niiiiight shift” e lá em cima pespegavam-se cinco estrelas. Só que já ninguém liga a singles e o que temos em mãos é um disco com uma canção de abertura soberba mas que não mantém a bitola. Historian é um belo exemplar de college-rock, tal como prescrito nos anos 90, que sofre de um problema: já vivemos os anos 90, conhecemos as linhas de guitarra engraçadas, o pára-arranca, a distorção no refrão, aquela dicotomia entre pop bubblegum e disparo de electridade, as letras que são tratados de auto-irrisão sobre a dificuldade de comunicar num mundo de gente confusa. Não que não haja elementos alheio à habitual chapa-4 do college rock: em Adictions surgem metais; em The shell há um solo de guitarra lamechas e evocativo de más-bandas sonoras dos anos 80; há violinos planantes em Nonbeliever, que aliás desemboca num refrão de estádio (talvez até demasiado açucarado); em Yours&mine os coros acentuam cada frase, criando tensão.

Continuar o exercício seria exaustivo: estou a citar canção a canção, à medida que reouço o disco uma e outra vez mais, para demonstrar que existem detalhes deliciosos clinicamente inseridos no que, grosso modo, é um exercício bem conseguido de replicação geométrica do college rock; e que é apenas em Night shift que, partindo de uma matriz, Dacus sai por completo desse colete de forças (strumming de guitarra eléctrica, melodia pop, refrão com distorção) e entrega uma grande canção. Night shift começa de mansinho, com uma sequência de acordes indie, melancólica, a pairar no ar, cada sílaba a pedir que se transcreva a letra para um post-it no frigorífico: “The first time I tasted somebody else’s spit/I had a coughing fit”, são as duas primeiras frases; na estrofe seguinte ouvimos: “I’m doing fine/ trying to derail my one track mind/ Regaining my self-worth in record time/ But I can’t help but think of your other in the bed that was mine”, e mais à frente: “Am I a masochist, resisting urges to punch you in the teeth, call you a bitch and leave?”, até chegarmos ao momento essencial, em que a dualidade de Dacus é marcada a negrito: “I feel no need to forgive but I might as well/ But let me kiss your lips so I know how it felt”. À medida que a canção progride instrumentos juntam-se, uma segunda guitarra desenhando outra linha melodica, uma terceira em fundo, que soa a cordas. O refrão surge – e isto é incomum – depois de uma pausa e não explode à primeira, só na repetição: “You got a 9 to 5, so I’ll take the night shift/ And I’ll never see you again if I can help it/ In five years I hope the songs feel like covers/ Dedicated to new lovers”. Toda a dualidade das separações amorosas fica bem expressa no gradual incremento da intensidade, na explosão de guitarras, nos u-uhs em coro. É uma tremenda canção, uma daquelas que pedem que as apelidemos de Canção do Ano e é só pena que não tenha companhia à altura.

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