A beleza da repressão em Katie von Schleicher
Um concerto na Galeria ZDB, em Lisboa, revela em Portugal esta cantora e compositora americana que se vem escondendo atrás do ruído (mas não dispensa o açúcar pop).
Há uma guitarra que soa a um motor avariado, a desintegrar-se em ferrugem e impotência, e uma rapariga que berra obsessivamente a mesma frase: “Baby don’t go”. A guitarra não desiste, abeira-se do cataclisma, mas o carro não arranca; a rapariga berra de novo e se o discurso nunca vai muito mais longe do que isto já a guitarra, que ameaça explodir, implode. E se alguém quisesse saber o que esperar do concerto de Katie von Schleicher, este sábado, na Galeria ZDB, em Lisboa, bastava este épico de frustração que abre Bleakspoitation, o seu disco de estreia, de 2015 – com um título que não foi escolhido ao acaso.
Atentem na palavra: Bleakspoitation, exploração do que é sombrio, desolador, desalentado. Não é um género musical de per si, antes um conceito “sujo e extremamente pesado" que ela e uma amiga inventaram, "por brincadeira, na faculdade”, assim definindo um tipo de música em que “não houvesse qualquer tipo de esperança”. Se não for desde já óbvio, então realce-se que na música de Katie não há exploração, de coisa alguma, antes um confessionalismo dorido em que a auto-consciência do narrador usa de humor para relativizar as suas tristezas – uma forma de lidar com a repressão.
É uma marca geracional, presente em Katie como em (por exemplo) Haley Heynderickx, essa auto-consciência paralizante, “o ridículo que sente quando nos olhamos ao espelho” ou “a distância incomensurável entre duas pessoas, ou o silêncio dentro das famílias”. Um silêncio, uma distância, que ela preenche com ruído sob o qual volteiam melodias. Repressão, sarcasmo, ruído e melodia: são estas as quatro principais marcas da escrita – musical e “literária” – de Katie.
Bleakspoitation foi o momento em que, explica ao PÚBLICO, sentiu que “finalmente, pela primeira vez, tinha captado o som que ouvia na cabeça": "O momento em que deixei de pedir desculpa pelo som sujo da minha voz, dos instrumentos.” Para trás ficavam anos de “péssimas canções” que “não saíram da gaveta” e um disco, Silent Days, apenas disponível digitalmente, que ela própria lançou: “Ninguém o ouviu. Dei por mim a pensar: ‘Que se foda, vou fazer o que eu quero ouvir’. Era esse o princípio. E de repente houve quem ouvisse. Pouca gente – mas houve.”
Uma profissão a sério
Só podemos presumir que o que terá atraído essa “pouca gente” para Bleakspoitation foi uma linguagem já adulta: a união entre ruído e pop imaculada, entre confissão e irrisão, levada ao extremo, por exemplo em Paranoia, canção de Shitty Hits, de 2017. Avaliemos então as evidências: um disco chamado Shitty Hits; uma canção em que a narradora confessa a sua paranóia; sujeira em fundo; e uma parafernália instrumental imensa.
A parte da parafernália instrumental é importante: Katie estudou música e as suas canções oscilam entre o garage-rock e uma pop quase barroca. Mas isto não a impede de dizer que não sabe o que está a fazer: “O meu instinto em miúda não era ser uma estrela pop, era escrever canções para estrelas pop. Eu tinha um piano e tinha aulas e era má. Tocava sozinha e queria escrever musicais ou hits tipo I will always love you, da Whitney Houston. Quando cheguei ao liceu já passava o meu tempo a tocar piano a torto e a direito, mas na maior parte do tempo em segredo.”
E aqui temos: não queria ser uma estrela pop, antes escrever para as estrelas; passava o tempo a escrever piano, mas às escondidas. Ou seja, repressão: “Não sou uma artista torturada, nem todos podemos sê-lo. Mas tive tempos difíceis na escola, por exemplo, e aprendi a proteger-me.”
A repressão, no entanto, já vem de trás. “Faz parte da cultura de onde venho”, diz esta natural de Pasadena, no Maryland. “É uma península, perto de uma baía, e não havia cultura musical – o meu gosto só se desenvolveu quando fui viver para Boston, aos 18 anos. Só aí é que descobri, sei lá, os Smog e mesmo os Beatles.”
Há muitos americanos assim, diz Katie, especialmente “os nascidos numa terra pequena": "Somos muito reprimidos.” A presidência Trump, acredita, “mudou isso": "Eu venho de uma cidade pequena, quase totalmente branca, de mente fechada, com um racismo a que só falta o sotaque sulista. Alguns dos meus irmãos votaram Trump. O meu irmão que não aceita a transsexualidade – é mais ou menos reprimido do que eu? Não sei.”
Repressão, diz, é “crescer a pensar que só certas coisas são possíveis, que tens papéis determinados, que tens de ser uma coisa que não és”. Pondo as coisas de uma forma concreta: “A minha mãe disse-me que eu era estranha por querer estudar música. Que eu devia pensar numa profissão a sério.”
Se interpretamos bem as suas descrições, repressão é crescer com uma camada de verniz que normaliza tudo. “O fodido”, explica, “é que as pessoas que defendem Trump aprenderam a fazer como o Trump e a não abordar os dilemas morais que são consequência das suas opções, das suas declarações”. Mas mesmo antes de Trump esse espartilho moral e ideológico já fazia Katie sentir-se isolada e recuar para um lugar de conforto – a música: “Sempre compus de forma isolada. Mesmo a minha forma de gravar era isolada, sozinha, a tocar todos os intrumentos.” Agora que já tem discos cá fora, que já houve gente a mostrar o seu apreço pela sua música, ela tenta “ser mais colaborativa". Na altura, admite, "fazia terapia através do som”.
Só que essa abertura ao mundo confunde-a: “Agora sei que alguém vai ouvir. E isso muda um bocadinho o que faço”. Não tem problemas em dizer que agora que está a escrever o novo disco pensa “muito nisso – no que as pessoas vão pensar": "O ruído costuma desaparecer à medida que há mais meios. E penso se devo ou não ter ruído, e no que o ruído significa para mim; se se tornou um truque, uma forma de esconder o que estou a cantar, uma forma de sujar as melodias para evitar que pareçam demasiado doces. Mas se calhar faz sentido fazer um disco mais limpo. Se calhar está na altura de parar de esconder-me.”
Ouvindo Party down ou Glad to be here, os singles que lançou em 2018, as guitarras e o açúcar pop ainda lá estão, mas de facto há menos ruído – ela está mais próxima de uma Aimee Mann, se quiserem. “Há que aceitar a mudança”, dizia-nos há dias. “E para mim a graça disto é poder ser criança outra vez e ter prazer a fazer coisa novas.”
Com a liberdade que não teve em criança? “Meu, isso...”, diz ela. E fica a meio da frase.