O corpo de Riço Direitinho é um caminho para a sua fragilidade
Treze anos depois do seu anterior livro, regressa com o sexo na mão e pouco amor no coração. O Escuro Que te Ilumina é um falso livro pornográfico, uma sucessão de casos sexuais que retratam uma solidão imensa, que só o corpo acalma. É um livro — cru, ferido, recheado daquela potência sexual que só os mancos emocionais conhecem — como não existe em Portugal.
Malhos, marsapos e mangalhos: se quiséssemos usar a linguagem que marca este escuro que ilumina o seu regresso, podíamos dizer que nos últimos anos José Riço Direitinho mostrou mas não concretizou; provocou mas não gozou – e estamos a falar de literatura. Para sermos mais precisos, não é exactamente como se nos 13 anos que distam desde Um Sorriso Inesperado, o seu anterior livro, Riço tivesse desaparecido do universo da palavra escrita, como se não houvesse juntado dois vocábulos – simplesmente deu outro uso às palavras: em vez de nos oferecer romances ou livros de contos, foi-nos dando crítica literária, aqui, no Ípsilon, ou na revista Ler.
Pelo que nem ele andou a brincar aos Salingers de Vilarinho dos Loivos nem nós deixámos de o saber vivo; ocasionalmente, numa frase mais iluminada numa crítica, ponderávamos: “Mas porque é que este tipo deixou de escrever romances ou contos?”. Da sua conta numa rede social ficava-se, por vezes, com a ideia de que o autor de Breviário das Más Inclinações (1994) estava a produzir nova obra, inevitavelmente vista (pelos leitores) como uma continuação desse mesmo livro ou um regresso a esse universo. Mas nunca veio obra alguma – talvez ele, quando partilhasse os seus avanços de escrita, estivesse apenas a provocar-nos (ou, para usar a linguagem que marca este escuro que ilumina o seu regresso: a titilar-nos), talvez tivesse perdido a paciência; ao fim e ao cabo, E.M Forster deixou de escrever aos 45 porque aquele mundo sobre o qual escrevia havia desaparecido. (Embora haja quem diga que Forster deixou de escrever depois de perder a virgindade.) Porque é que o mesmo não haveria de ter acontecido a Riço Direitinho?
O que lhe aconteceu – essa matéria engimática a que chamamos vida – trouxe-o até O Escuro Que te Ilumina, que está muito longe de ser o esperado regresso a Vilarinho dos Loivos, até hoje simultaneamente a salvação e cruz de Riço. Era nessa terra imaginária que se situava Breviário das Más Inclinações, segundo livro e primeiro romance de José Riço Dieritinho, que ampliava a inclinação rural de A Casa do Fim, conjunto de contos de 1992 com que se estreou na literatura nacional. O Breviário tinha outro fôlego e, a propósito de narrar a vida de um tal José de Risso, “nascido numa aldeola (imaginária) junto à fronteira com Espanha, e destinado desde cedo à desgraça” (para citar uma peça de jornal sobre o livro) criava uma “das mais espantosas cartografias mentais de um povo e de um tempo que está prestes a não mais regressar”.
Com Risso, com o Breviário, Riço tornou-se de imediato um ESCRITOR, colocado em robustez, potencialidade de colosso, ao lado de Saramago e Lobo Antunes – mas também se tornou (citamo-lo) “o escritor das osgas” e carregou as ditas osgas e mezinhas às costas anos a fio – ao terceiro livro, Relógio do Cárcere (1997), um romance histórico passado durante as guerras liberais do século XIX, regressou a Vilarinho de Loivos; voltaria a fazê-lo em Um Sorriso Inesperado, de 2005. Pelo meio, Histórias com Cidades, de 2001, ensaia uma fuga rumo ao que o título indica – só Riço saberá o peso das osgas que carregou.
Mas não há fuga ao rural como esta de agora e o peso, agora, é outro – e de todos os regressos este é o mais improvável: um voyeur que vive um amor platónico e que desce ao submundo do sexo ocasional à beira-rio, das mulheres que põem o rabo de fora dos carros sem saber quem (literalmente) vem aí, dos clubes de sexo, das cordas e da submissão, da entrega a um outro que se desconhece mas nos permite conhecer o nosso lado negro (que, possivelmente, nos ilumina). A contra-capa fala em pornografia mas, e apesar das caralhadas, das cricas, dos rabos, dos butt-plugs, talvez o que aqui esteja em causa seja outra coisa: a solidão desesperada de um homem que não sabe como amar.
O que faz pensar: que vida foi essa que levou Riço a sair do seu estado de hibernação, de sexo na mão e coração vazio?
Há dias, quando falámos ao telefone para marcar esta entrevista, perguntou-me se eu tinha gostado. E respondi: “Gostei mas não estava à espera de nada disto”. Retorquiu: “Eu também não”.
Pois, e não estava. Surgiu praticamente do nada. Este livro apareceu porque para aí há ano e tal, numa daquelas conversas parvas que um gajo tem, falei ao Francisco José Viegas em coisas que se passavam em Lisboa, em meios um bocado underground – práticas como o dogging [a prática de sexo, entre casais, em locais públicos, de modo a serem vistos]. E ele disse-me que eu devia fazer uma reportagem para a [revista] Ler, que devia ir aos sítios, ver. Andei meses a pensar na forma de escrever esse texto e não encontrava maneira – até que decidi que devia ser uma coisa mais literária e devia escrever em forma de diário. Escrevi um texto longo para a revista, e o texto saiu-me muito rápido, escorreito – e fiquei a pensar que era uma pena acabar ali. Aquilo saiu na Ler no Verão passado e perguntei ao Viegas o que é que ele acharia de eu fazer um romance disto – arranjava uma história por trás, escrevia de maneira rápida, editava sob pseudónimo, era quase uma brincadeira porno.
E o que é que aconteceu depois?
Depois comecei a escrever, o texto saiu-me mais literário e passei a gostar do que estava a escrever – e uns meses depois, já com metade deste livro escrito, achei que o poderia assinar, que não seria coisa que me envergonhasse. E a partir daí, quando assumi isso para mim próprio, passou a ser um objecto literário na minha cabeça.
Porque é que querias escrever depressa?
Impus-me terminar o livro em quatro ou cinco meses porque tive receio que acontecesse o que aconteceu a outros que não cheguei a editar: a partir de determinada altura entravam num ritmo muito lento e não os acabei. Tive medo de não chegar ao fim. Impus-me um prazo de quatro ou cinco meses, e um ritmo de trabalho um pouco forte, para mim. Normalmente escrevia 12 horas por dia e chegava ao fim do dia com uma página e não queria isso. Queria acabá-lo depressa. Um bocadinho também para ultrapassar o facto de não ter publicado nada nos últimos 12 ou 13 anos.
E fazê-lo cortando definitivamente com o universo rural, porque mesmo o Sorriso Inesperado...
O Sorriso Inesperado reaproveita e continua A Casa do Fim – era uma forma de encerrar as histórias desse, de aproveitar o que tinha ficado de fora. O Relógio do Cárcere, que é um romance histórico passado nas guerras liberais do século XIX, também se desenrola em Vilarinho dos Loios, embora tenha um estilo diferente do do Breviário.
No Histórias com Cidades já saía desse universo.
O Histórias com Cidades aparece porque não me queria repetir; vou confessar uma coisa: é-me fácil imitar vozes literárias, fiz muito isso aos 18 no DN Jovem e ainda hoje é-me fácil escrever em estilos diferentes. Gosto disso, de deixar sair qualquer coisa que não se consegue arrumar no estilo anterior. Foi engraçado: quando saiu Histórias com Cidades, depois de três livros muito rurais, alguns críticos não perceberam onde é que o livro se devia encaixar, porque estava rotulado de gajo que escreve sobre osgas e couves. Eu tinha medo que, sendo tudo localizado no mesmo sítio, aquele cenário se tornasse repetitivo. Quase que por respeito pelos leitores quis mudar. Achei qua ia demorar meses a entrar numa escrita mais urbana – e sempre que tentava aquilo enchia-se de passarinhos e árvores num instante. Mas mal cheguei a Berlim [onde o livro foi escrito, ao abrigo de uma bolsa literária] a escrita começou a sair-me bem e urbana.
Ainda não percebi o que o fez estar tantos anos sem editar.
Houve várias razões, não uma – o interregno é o resultado de um sistema de equações, de várias mudanças na minha vida. Quando abandonei a Engenharia deixei de ter um emprego regular – antes chegava a casa à meia noite, escrevia até às 5, dormia até ao meio dia, acordava e ia trabalhar. Estava no projecto da TransGás, de instalação de gás natural. Isso permitia-me um certo registo de escrita. Também tive um filho e comecei a fazer crítica literária. O facto de ter que ler um livro diferente todas as semanas, às vezes mais que isso, porque a Ler nessa altura era uma revista mensal, implicava que na ficção tivesse de mudar a agulha, e demorava muito tempo a fazer isso. Se eu tiver apenas três ou quatro horas por dia de escrita não resulta. Fui sempre escrevendo, apesar de não publicar. Tenho vários romances inacabados, um a mais do meio, que ando a escrever há muitos anos e tem quatro ou cinco estilos diferentes.
E porque é que interrompe o interregno com este e não esse?
Este... apareceu-me aquela voz e aquele estilo, quase prontos no que eu escrevi para a Ler.
Vem anunciado como um romance pornográfico, mas está longe de ser só isso.
Deixou de ser só isso quando resolvi assinar o livro com o meu nome. Escrever sobre sexo é estar no fio da navalha. Depressa e facilmente se resvala para o ordinareco sem graça. Esta escrita é um esforco redobrado. Mas depois de lhe apanhar o tom deixei-me ir. Pelo meio há cenas cruas de sexo mas é um romance romântico, ou ultra-romântico.
O que se nota pela relação do protagonista com a mulher pela qual fica obcecado, que coloca noutro patamar.
Ela é muita diáfana, quase uma Laura do Petrarca, uma figura que está lá em cima, quase intocável.
Não é um romance pornográfico, é um romance sobre a solidão.
É sobretudo o retrato de uma enorme solidão, quase diria que desesperada, porque tem à mistura uma falta de afecto, a rejeição, a sensação de este homem ter sido sempre deixado para uma segunda linha, deixado na prateleira para quando falha a ilusão das mulheres com os homens que elas idealizam – ele é o homem que chega depois, o homem de reserva. E ele vive a vida toda com isto, o que lhe provoca esse desespero. E o que tentei, de certa forma, foi fazer esse retrato de uma solidão quase desesperada.
Ele dá muita importância à imagem física, ao facto de no passado ter sido gordo.
Foi gordo e ali está a reabilitar uma masculinidade que foi sendo destruída ao longo de uma série de anos.
E opta por apresentá-lo sem família, nem amigos, que são “lugares” de redenção – pelo menos não surgem no livro.
Foi propositado deixar isso de fora, porque queria que o livro contivesse apenas o essencial. Há sempre a tentação de escrever para encher chouriços e, quando leio, das coisas que mais me irritam são frases, páginas inteiras que não servem nada. Gosto da escrita depurada ao máximo - o que não significa uma escrita sem enfeites, não é isso. É uma escrita que diz apenas o que é preciso dizer. Este livro foi uma tentativa de, por assim dizer, uma Second Life, de mostrar a vida que temos por trás da vida que mostramos. Quando ele se põe a ver os vizinhos e a tentar perceber o que lhes aconteces não lhe interessa se eles cometem pecados, se têm virtudes, interessa-lhe tentar entender o lado escuro – que não é um lado mau, é aquele lado que todos temos e não mostramos, porque somos incapazes de o mostrar. Ele quer observar as fantasias que passam ou não à realidade.
Sendo que ele deixa de observar quando passa a agir.
Ele acaba por entrar naquele mundo, vai àqueles lugares que as pessoas conhecem e fingem não conhecer – e um exemplo disso é a história com a professora de filosofia medieval, uma senhora casada, a senhora do [bar lisboeta de, hum, temática sexual] Mise-en-Scéne [onde a senhora professora leva tau-tau, entre outras coisas]. O que tentei mostrar foi a necessidade que há de, de vez em quando, extravasarmos fora das regras que nos impõem e de aceitarmos que se calhar não somos tão perfeitos quanto nos ensinaram a ser, ou como a sociedade quer que nós sejamos.
Que não é muito diferente da história da juíza [outra mulher com quem o protagonista se envolve sexualmente].
A história da juíza é de alguém que quer descobrir-se. Toda esta gente está um pouco à procura de si mesma. Por volta dos 40 perdemos um bocadinho o pudor, em particular nestas questões de sexualidade. Já estamos por tudo. O que pretendemos é descobrir o mundo e a nós próprios. Vão-se tentando coisas.
Naquela cena do Mise-en-Scéne ele diz, no fim, qualquer coisas como “O desejo é como um rio e o que nós fazemos é ir criando um barragens, porque senão rebentam os paramentos”.
E é um bocadinho o que aquela senhora faz – tem uma vida regrada, religiosa, obedece a tudo, mas de vez em quando tem de abrir umas comportas para se manter viva. Nós temos essa necessidade de cometer falhas, que é o que nos ajuda a continuar a acreditar. Este livro é sobre essas falhas, falhas que são escapes, maneiras de nós chegarmos ao verdadeiro eu.
O facto de serem actos extremos ou que não contaríamos à nossa avó não torna o Eu que os comete mais verdadeiro. Porque é que isso é mais verdadeiro que dar banho à criança ou pagar as contas a horas?
O verdadeiro é aquilo que somos sem repressões. O Mise-en-Scéne, a praia da Rainha, o parque da Expo [locais de sexo dissoluto, segundo a moral vigente, e locais presentes no romance]: as pessoas que vão àqueles sítios são das mais regradas que podes encontrar durante o dia. Isso vê-se muito nas relações de sado-masoquismo: os submissos são sobretudo as pessoas que têm poder e que ali podem abandonar-se. Há sempre um limite entre o prazer e a dor que não pode ser ultrapassado, porque chega ao ponto em que pode pôr-se a vida mental em risco. Este livro é sobre isso: o outro lado, é um livro sobre gente que se procura salvar. Que tenta aliviar os conflito entre o que quer ser e aquilo a que é obrigada socialmente, gente que transgride, que luta assim contra a ansiedade a que esses conflitos, inevitavelmente, conduzem. Gente que tenta fugir à neurose ou que assim a vai gerindo.”
O Mise-en-Scéne, a praia da Rainha, o parque da Expo: foi a estes sítios? Foi ver? O que pensou quando lá estava?
Fui a estes sítios, mas também já tinha visto disto quando vivi em Berlim, em 2000. O Histórias com Cidades aborda ocasionalmente este lado – mas nessa altura não conseguia escrever declaradamente sobre sexo da maneira que escrevi este livro. A literatura portuguesa, e se calhar as outras também, é muito bem comportada nos costumes. Dizem-se umas caralhadas numa página e depois pronto. E mesmo quando há histórias que vão contra os costumes há sempre um final quase punitivo, como nos filmes de Hollywood – como o Closer (Mike Nichols, 2004), com aquele final do mais moralista que há. Aqui apeteceu-me escrever sem censura nenhuma, como os malucos, ir por aí fora, escrevo o que tiver de escrever e não me pus a pensar o que vão pensar os críticos, os leitores, a minha mãe e o meu pai.
Mas o que viu nesses locais inspirou o que escreveu?
Inspirou, claro. Vou dar o exemplo de uma figura pública que não vou nomear – ele estala os dedos e tem 100 miúdas à volta dele; mas tem uma panca que é chegar aos carros e pedir broches. Porquê? Porque quer saber o que seria a vida dele se não fosse uma estrela. Aquelas são as únicas horas durante a vida dele em que ninguém sabe quem ele é, porque ele tapa a cara. Havia casais de modelos que andavam ali no meio, a ver o que é que calhava. E isto também é uma procura do que nós somos se não tivermos em cima de nós o peso que a sociedade nos põe em cima. É descobrir quem somos quando a sociedade não nos diz “Não faças isto, tu és uma pessoa assim e assado”.
Porque é que sabemos tão pouco da relação dele com a mulher que ele observa e com a qual mantém uma relação platónica? Sendo que depois ficamos com ideia de que chegou a haver uma relação entre eles.
Fica-se com a ideia de que houve uma relação, sim. A relação deles para ela representa, provavelmente, o tal outro lado de que falava. Há uma parte em que digo que ela desaparece ao fim de semana, e depois ela desaparece ao fim de uns meses – ela viver ali, ser vizinha dele, isso terá sido um interregno na vida dela, imagino que tivesse outra vida, uma família, e estava ali por meia dúzia de meses.
Mas qual a razão para se passar por cima da relação entre eles? Ele idealiza-a – mas depois não sentimos que ele tenha, por exemplo, raiva por perdê-la, nem sabemos como a relação decorreu.
Para mim aquele é um homem que já aceitou a vida, que as coisas são assim, que ele nunca vai ter o papel principal, já nem idade tem para isso. Aquela história com ela é uma história em que ele não pode pedir muito mais. Ele fala muito em imerecimento – é como se ela fosse quase como um milagre que ele já não espera e na cabeça dele ele sabe que não (a) merece.
Há um paradoxo: ele arrisca numa vida dupla, nocturna, de excessos – mas depois é acomodado à sua incapacidade de manter uma relação.
Não queria usar a palavra acomodado mas olha para a vida como se as coisas estivessem traçadas e o lugar dele não é esse, não é com ela, não é de ficar. Ele desde o início põe aquela mulher num patamar muito alto. Ele nunca acredita, sente que não a merece – todo o livro é à volta disso.
Isso limita-o às conquistas quase sem rosto.
Em algum acto sexual, e aqui refiro-me apenas ao dogging, muitas mulheres não vêem a cara do tipo com que estão a ter sexo – quando estão dentro dos carros e abrem a porta e espetam o rabo para fora, o gajo que lá está por trás pode ser qualquer um. É por isso que quando no livro se fala de sexo com desconhecidos se diz que é como se [o protagonista] fosse um sex toy que não precisa de pilhas.
Interessa-lhe como o livro vai ser recebido? Como as pessoas o olharão hoje?
Interessa-me, sim. Agora, quando publiquei o Histórias com Cidades, achei que já tinha cumprido o serviço literário obrigatório. Nunca me levei a sério – escrevi de maneira séria, mas não me levo a sério. O sucesso dos outros livros, o facto de em 1998, quando Portugal foi país-tema na Feira de Frankfurt, ter sido capa de jornais (foi o Saramago, o Lobo Antunes e eu), isso não me fez levantar os pés do chão. Um passo na direcção do sucesso são dois passos na direcção do risco de resvalar a seguir. Aquela malta da minha geração, que surge no DN Jovem, eu, o [José Eduardo] Agualusa, o [Pedro] Rosa Mendes, nós ríamo-nos dos gajos que se levavam a sério. Essa foi a geração dos putos que conheceram o Saramago, o Mário de Carvalho, etc, que conheceram gente que escrevia livros a trabalhar as palavras – mas nós não nos levámos a sério. E mantive-me nesse registo. Escrevo quando tenho de escrever, nunca fiz da literatura uma profissão, sempre me fez impressão fazer livros de dois em dois anos. O Camilo escrevia um livro num mês, mas isso são os génios, o resto das pessoas não consegue, senão escreve merda. Esta questão passa também por um trabalho com as palavras, que antes existia, quando a escrita era uma escrita em que a frase era trabalhada, as palavras tinham peso – e ainda escrevo assim. Obviamente que me interessa a história mas a minha ideia de literatura é a história ser acompanhada por uma escrita que se adapta à histórias – e isso demora muito tempo. Esse trabalho de escrita desapareceu. A literatura portuguesa está muito agarrada à importância da história, acima da escrita. Em termos de riqueza vocabular o número de palavras passou para metade.
Fica com algum arrependimento? Com a ideia de que falhou? De que podia ter feito mais? De que podia ter escrito de maneira diferente?
Até 2005, com o Sorriso Inesperado, escrevia para que as pessoas gostassem de mim, e depois essa ideia - de que gostassem de mim porque eu escrevia, pelo que eu escrevia – passou a irritar-me. Porque é que eu tenho de precisar da escrita para que gostem de mim quando as outras pessoas não precisam disso? E foi esse conflito que andei a viver estes anos. Eu não quis precisar da literatura para que gostassem de mim. E com este livro já me é indiferente se gostem de mim ou não.
Mas isso se calhar porque hoje tem outras coisas, outro sustento emocional.
Não, antes pelo contrário. Mas escrever tem um peso. E esse peso é tentar descobrir um bocadinho o que é que andei a esconder com a escrita. E isso acaba por ser destruir o que construí ao longo de anos à minha volta para me proteger. Já não quero que gostem de mim por causa dos livros. O que me interessa agora, e essa é a mudança com este livro, é chegar às minhas fragilidades. O que antes tentava reparar com os livros, agora não me importo de lá pôr. E daí talvez este livro ter aparecido desta forma e ser importante para mim nesse sentido. E acho que isso se percebe também na escrita. Provavelmente voltarei a uma escrita parecida com a do Breviário, mas neste livro não me penteio ao espelho, não digo “Olhem para mim”. Escrevo com as palavras que tenho de usar e com as asneiras que têm de ser ditas. Era deste livro que precisava para ter vontade de esccrever.