A casa da avó
Nunca conheci a minha avó sem o meu avô. Contudo, as casas dos meus avós foram sempre “a casa da avó”.
Primeiro, houve aquele apartamento pequeno, às portas de Paris, cidade onde vivi a minha primeira infância, época longínqua durante a qual se formaram, cresceram e fincaram as raízes da relação visceral que vivi com a minha avó. Talvez por causa disso houvesse pouco ou nada que eu lhe pudesse esconder. Criança, adolescente ou mulher, as amarras que a ligavam a mim iam directamente à minha alma e tornavam-me transparente ao seu coração. Era com a força desse órgão transbordante que me via, me aconselhava, rezava por mim e me acompanhava, mesmo que estivéssemos fisicamente distantes uma da outra, como acabámos por estar grande parte das nossas vidas.
Recordo o cheiro a madeira e a cera que emanava das escadas que era preciso subir para chegar à porta do pequeno apartamento dos meus avós. Para chegar à casa da avó. O corrimão brilhava com a luz que entrava pelas janelas altas e estreitas que acompanhavam a escadaria. Recordo o toque suave da sua madeira polida, sempre limpa, e o prazer que me dava olhar para baixo, pelo vão elegante, para observar a tijoleira preta e branca do pavimento, no rés-do-chão.
Chegada ao segundo andar e aberta a porta do apartamento, era recebida por um dos primeiros cheiros a casa de que me recordo e que poderei recriar um dia, mas apenas em parte. Não me bastará misturar o aroma da laca Elnett ao perfume Aramis. Faltarão sempre os odores inimitáveis da pele dos meus avós. O cheiro do pescoço da minha avó, sempre o mesmo, desde as minhas memórias mais remotas até àquele dia, no hospital, quando teve ainda lucidez para me pegar nas mãos, falar comigo e abraçar-me. O cheiro doce a charneca algarvia de há cem anos, a erva-príncipe e a arcas onde se guardavam lençóis, amêndoas e figos secos.
Avó, que bom foi eu ter encostado o meu nariz ao teu pescoço só mais uma vez.
O corredor estreito desembocava na pequena cozinha, dominada por um grande frigorífico que se abria pondo o pé sobre um pedal de metal. Havia uma mesa onde se faziam todas as refeições e na qual me era oferecido um lugar à cabeceira quando estava de visita. Ficava, então, de frente para a janela, de onde se via o céu e os telhados e na qual se pendurava a gaiola de um canário saltitante, cantor, feliz. Nessa cozinha, a minha avó tirou-me uma fotografia a lavar a loiça, era eu tão pequena que precisava de uma cadeira para chegar à bacia. Deve ter chamado por mim antes de carregar no botão da Kodak (como chamava a toda e qualquer máquina fotográfica): “Xani!” Clic.
Fiquei no retrato, a olhar para trás, sobre o meu ombro direito, a olhar eternamente para ti, avó.
Nessa cozinha comi baguetes estaladiças ao pequeno-almoço, carregadas de manteiga que derretia no calor do pão acabado de cozer. E pães com chocolate e folhados de maçã ao lanche. E esparguete, que a minha avó regava com o seu molho de tomate caseiro. E omeletes de queijo acompanhadas de batatas fritas, que eram a especialidade do meu avô. Só em Portugal, muitos anos mais tarde, o vi a cozinhar uma outra coisa: sardinhas. Já a minha avó era uma cozinheira exímia que combinava o melhor da culinária portuguesa e da francesa, e até a de outras paragens. Lembro-me de a ver anotar com minúcia as instruções, em francês, de quem cozinhava na televisão a preto e branco, das suas colecções de revistas de culinária e dos recortes com receitas avulsas que ia recolhendo e guardando em pastas.
Neste último Natal, avó, a ausência das tuas tartes de amêndoa e de maçã sobre a mesa da consoada foi um grito de saudade insuportável.
Havia um quarto pequeno, uma cama de casal com uma colcha de veludo verde, uma única mesa-de-cabeceira, um duche exíguo para onde se entrava subindo um degrau e um espelho em frente do qual punha laca nos cabelos e pintava os lábios com batom antes de sair de casa, fosse para o que fosse. Caminhava na rua com a cabeça erguida e seguia confiante como quem encarna toda a dignidade do mundo. Era gentil, cumprimentava, sorria.
O som dos teus tacões nos passeios de Paris, avó, e a minha mão na tua.
A sala era a maior e mais luminosa divisão da casa. Um sofá, a televisão, uma vitrine com bibelots, uma mesa que se abria nas ocasiões especiais, mas que no dia-a-dia servia para apoiar o telefone e à qual se sentava para preencher, semana após semana, as apostas no Lotto e no Tiercé. Só que o dinheiro, esse, veio exclusivamente de 25 anos de trabalho como emigrante. Da janela da sala via-se o pátio interno do prédio e a janela da casa da concierge. Cá de cima, observava o canteiro redondo, relvado, afastando os cortinados translúcidos, e quando voltava a concentrar a minha atenção nos detalhes da sala, percorria com o olhar o padrão hipnótico do papel de parede, provavelmente colado nos anos 1960. Dourado sobre bege. Desenharia esse padrão agora, se mo pedissem. Era nessa sala que eu dormia, numa cama improvisada, feita com as almofadas do sofá colocadas no chão e impregnadas do cheiro dos meus avós. Era a minha cama dos longos meses de Julho quando, terminadas as aulas em Portimão, eu regressava a França.
Regressava a tua casa, avó.
Um Verão houve em que soube que aquela era a última vez. Os meus avós reformaram-se, guardaram os seus haveres em caixas de cartão, entregaram os móveis a uma empresa de mudanças e, no início de Agosto, entrámos no Renault do meu avô para regressar de vez a Portugal. Eu, pré-adolescente, sentada no banco de trás, olhei para o prédio, para a rua, enquanto o carro se afastava, ainda o dia não tinha nascido. Não quis chorar, mas levava um nó no peito que nunca desatei: não voltaria a entrar naquela casa pequena, recheada de memórias e cheiros primordiais. Paris já não era a minha cidade havia uns anos; agora deixava de ser a cidade dos meus avós, deixava de ser a cidade da casa da avó.
Era o adeus definitivo a uma certa forma de felicidade.
A casa que os meus avós foram habitar em Portimão — a nova casa da avó — é uma casa da família. Eu mesma já lá vivera com os meus pais e o meu irmão, no nosso regresso a Portugal. Reformada, com saúde, feliz por voltar à terra e com mais espaço, a minha avó expandiu-se nesta casa, que se encheu de gente e passou também a albergar um cão. No grande quintal onde eu brincara tanto, foram plantadas árvores de fruto, roseiras e ervas de cheiro para chás e temperos. Na sala, com o dobro do tamanho da de Paris, a mesa foi palco de almoços e jantares memoráveis, aqueles em que nos perguntava, deleitada, se a comida estava boa ainda antes de termos posto a primeira garfada na boca. Ninguém sabia receber como a minha avó. Uma refeição em sua casa era um acontecimento. Tudo era planeado com detalhe, das entradas às sobremesas, e a mesa posta com esmero porque seria o palco dos seus momentos predilectos: ver-nos comer, colher os elogios, explicar como se fazia.
No Verão instalou-se o hábito de fazermos a sardinhada dos netos. Era quando o meu avô entrava em cena, de roda das sardinhas reluzentes, fresquíssimas, compradas de manhã bem cedo, e do fogareiro cujo carvão tinha de estar no ponto certo para receber o peixe sobre a grelha. Uma arte. E lá ia ele, do fogareiro para a mesa, da mesa para o fogareiro, transportando pequenas travessas de sardinhas assadas, sorrindo permanentemente. Por vezes parava, olhava para nós — na época, sete netos e um bisneto — e dizia: “Quem há-de morrer e deixar uns netos tão lindos...”
Sorríamos, convencidos de que tínhamos ainda todo o tempo do mundo.
Nesta outra casa da avó reencontrei os objectos de Paris e descobri muitos outros, agora com espaço para serem expostos e para reclamarem a sua principal função: compor a cronologia da família, contar a nossa história, alimentar a memória e adiar o esquecimento. Surgiram as fotografias dos antepassados — a minha trisavó, o rosto onde me revejo; o meu bisavô, seu filho, fardado para defender território português, no Norte de Moçambique, durante a Grande Guerra —; os bordados feitos pela bisavó quando adolescente, emoldurados e pendurados na parede; os anéis, as pulseiras, os móveis herdados; um registo antiquíssimo do Sto. António, que passa de mães para filhas há várias gerações. Esta imagem centenária ocupou o lugar central de uma camilha no quarto dos meus avós e foi à sua volta que se multiplicaram outras imagens de Sto. António, vindas de várias partes do mundo, ao ritmo das viagens dos filhos, dos netos, dos amigos. Nunca a vi ajoelhada nas suas orações àquele homem bom, mas construí na minha cabeça essa imagem porque sei que pediu por mim, durante longas horas, no meu pior momento.
Todos os dias agradeço esse milagre, avó.
Os bisnetos que foram chegando e que visitavam a casa da avó ouviram o mesmo que eu quando era pequena: “Não se mexe nas coisas da avó.” Todos obedecemos. Até ao dia em que a avó morreu, o avô também, e a casa teve de ser vazada, e nos vimos obrigados à violência da pior devassa.
O Museu da Inocência, de Orhan Pamuk, foi o primeiro livro que li este ano. Conta a história do amor obsessivo de um homem que durante anos rouba e colecciona objectos da mulher que idolatra. Mais tarde, organiza um museu para expor esses mesmos objectos e contar a história do seu amor, um museu que existe mesmo, em Istambul, e que é um dos mais belos que alguma vez visitei.
No início deste ano, avó, quando fui pela última vez à tua casa, foi deste museu que me lembrei.
Tinha diante de mim — espalhada sobre a cama, o sofá, as cadeiras, as mesas, os móveis, o chão — a vida dos meus avós, retirada dos fundos dos armários, das gavetas, das caixas. As conquistas, as alegrias, as tristezas, as fragilidades: tudo exposto sem pudor. Mais de 90 anos de vida; mais de 70 anos de casamento. Os relógios da casa, desacertados, continuavam a medir um tempo que já não interessa. As roupas pareceram-me mortas, também. Toquei e peguei no que quis: os frascos de perfume a meio, as garrafas de licor por abrir, os óculos graduados abandonados, um porta-moedas castanho com um punhado de francos franceses, as centenas de fotografias guardadas em envelopes, os terços, as loiças, os estanhos.
Aí, onde estás, importar-te-ão estes objectos? Terão ainda valor para ti? Estarás a repreender-me, sem que eu possa ouvi-lo, “não se mexe nas coisas da avó”?
É que a mim — que me emocionei às lágrimas no Museu da Inocência, sensibilizada pela devoção de um homem aos objectos da mulher que amou — tudo me pareceu, na casa que já não é a da avó, insensato. Passamos uma vida a apegar-nos a coisas e depois morremos e deixamos de herança uma saudade imensa que não encaixa na forma de uma fotografia emoldurada, de uma écharpe, de um bibelot, de uma chávena de chá ou de um livro.
Creio que me emocionei no Museu da Inocência porque não conheci, nem amei, os seus protagonistas. Fiquei, apenas, sob o efeito da história bonita e do lugar peculiar. Mas na casa da avó que amei profundamente, rebelei-me contra os objectos inertes, que impunham uma presença arrogante, como se tivessem direito a estar ali, quando quem de facto importava, quem devia ocupar aquele espaço e o vazio no meu coração, quem eu queria tocar já tinha partido. No entanto, eu quis — todos nós quisemos — ficar com um pouco dos despojos da casa da avó. E assim, em diversas outras casas, se construíram pequeníssimos museus à maneira de cada um. Espalharam-se os objectos. Espalhar-se-ão até as roseiras.
A morte expulsou-nos da tua casa, avó, mas o teu amor, que é a nossa casa, prolongar-se-á em nós.