“O verdadeiro impacto dos sixties foi a normalização da ideia de que nós podemos mudar o mundo”
Samantha Christiansen é professora assistente na Universidade de Marywood, Pensilvânia, EUA. Co-organizou o seminal The Third World in the Global 1960s (2013, Berghahn) e publicará ainda este ano, na Bloomsbury, o livro Global Sixties. Autora prolífica, é uma das mais emergentes vozes no estudo da história global do protesto e do “terceiro mundo”.
The Third World in the Global Sixties oferece duas das mais importantes intervenções historiográficas que mudaram o modo como olhamos para os anos sessenta. A primeira implica olhar para estes como um fenómeno global. A segunda sugere que os pensemos a partir das relações que tiveram com as dinâmicas do “sul global”. Pode explicar a necessidade destas intervenções?
No que diz respeito ao primeiro ponto trata-se essencialmente de uma questão de exactidão na representação da época. Esta foi muito mais global nas mentes e nas acções dos actores históricos do que a historiografia antiga sugeria. Enquanto historiadores temos um papel importante na definição do passado. Ao tomar certas decisões que enfatizam ou privilegiam a experiência ocidental – por conveniência, familiaridade ou outra qualquer motivação – estas tendem a perpetuar-se no campo da história. Todos tendemos a trabalhar em cima de estruturas estabelecidas. O caso do estudo dos anos sessenta não é único, claro: é apenas parte do modo sistémico como o poder e o privilégio se auto-reproduzem. Em muitos sentidos, é isto que os global sixties procuravam confrontar! Eu acho que o trabalho do Arthur Marwick é um bom exemplo deste modelo ocidental. Apesar de ter sido claramente inovador no estabelecimento de conexões transatlânticas, bem como em colocar algum do enfoque na expressão cultural, temos de nos interrogar se um trabalho que apenas incluiu um caso do “sul global” pode ser definidor dos Sessenta. A questão central é não procurar definir modelos ou parâmetros baseados no Ocidente e depois procurá-los em espaços não-ocidentais, com o objectivo de os considerar parte da mesma investigação. Ora isto não é uma análise global e oferece um modo muito redutor de pensar o mundo.
E quanto ao segundo ponto?
A inclusão do “terceiro mundo” ou do “sul global” e a promoção do estudo sobre como os Sessenta globais influenciaram e foram influenciados pelas dinâmicas que ocorreram nestas áreas previamente negligenciadas (pela historiografia) abrem novos territórios para pensar os anos Sessenta. Mudam o modo de pensar o “sul global” e, claro, obrigam-nos a reconsiderar o que tomamos por adquirido em relação ao “norte global”. O modo como o campo mudou nos últimos dez anos, no sentido de dar mais relevo às narrativas do “sul global”, demonstra bem as recompensas associadas a estas operações.
O que explica, em seu entender, o atraso em incluir o “sul global”, até em função do evidente impacto das dinâmicas no “terceiro mundo” no Ocidente?
Sempre existiram trabalhos reconhecendo dimensões globais, mas esse reconhecimento era esporádico e casuístico no que diz respeito ao que era tratado. E os pressupostos sobre o que contava como sendo o estudo dos sixties estavam muitas vezes enraizados em experiências e vieses ocidentais. Eu acho que as razões mais óbvias se prendem com privilégios inerentes dos académicos do “norte global” e com os tópicos favorecidos no estudo deste último. É realmente desafiador para alguns verem os que estão no “sul global” como actores na história (ou no presente), não apenas como objectos da história. (Eu uso “terceiro mundo” – que designa uma ideia geográfica, política e temporal específica – quando me refiro aos anos Sessenta porque “sul global” é um anacronismo.) Eu não acho que a exclusão tenha sido intencional (ou mesmo completa) e específica da historiografia centrada nos estudos dos anos Sessenta. Por um lado, foi inércia, por outro um reflexo da academia.
Como alguns dos nossos colegas sugerem, a figura do “heróico combatente pela liberdade do ‘terceiro mundo’” substituiu a antiga figura do camponês e do operário como símbolo de visões do mundo marxistas e soviéticas. Este processo exemplifica o modo como a mudança social nas sociedades ocidentais foi condicionada por inspirações externas?
Não acho que o combatente pela liberdade alguma vez se tenha tornado um símbolo das mundivisões soviéticas. A União Soviética persistiu associada aos trabalhadores urbanos e industriais e aos projectos do Estado. E acho que as personalidades do “terceiro mundo” têm de receber o crédito desta mudança no simbolismo quando pensamos no socialismo e no marxismo. Líderes pós-coloniais como Nehru, Nkrumah ou Nassar, entre outros, participaram conscientemente nesta redefinição do marxismo em termos do “terceiro mundo”. Claro que Mao também teve um papel decisivo nesta produção de imagem. O papel das guerrilhas do “terceiro mundo” na proliferação global de uma imagem de si como figuras emancipatórias também precisa de ser relembrado: Che Guevara e Ho Chi Minh, por exemplo, conheciam bem o poder simbólico da figura do combatente pela liberdade. Todos estes actores também compreendiam o ambiente mediático global e usaram-no de modo eficaz para criar um “produto” que os revolucionários ocidentais consumiram com entusiasmo.
O que explica isto no seu entender?
No que diz respeito ao efeito de inspiração externa, eu acho que isso tem que ver com o facto de a revolução do “terceiro mundo” ser mais obviamente contra-hegemónica: a guerrilha é, literalmente, uma luta revolucionária visando a transformação do Estado e da sociedade, e isso é muito mais romântico que uma reforma legislativa ou uma negociação social no interior de um Estado hegemónico. Eu acho que a hegemonia, na Europa Ocidental e nos Estado Unidos, é desmoralizadora, em certo sentido. Ou talvez um reflexo da desmoralização. Acho ainda que este processo tem que ver com a total, ou quase total, repressão governamental de organizações comunistas e socialistas no interior do bloco ocidental, especialmente nos Estados Unidos. Esta dizimou a esquerda ligada a sindicatos no período do entre-guerras e no pós-II Guerra. Depois do Estado ter atacado e prejudicado tão eficazmente os trabalhadores organizados, faz sentido que a esperança da revolução venha associada a outro símbolo.
Acha que podemos falar dos anos Sessenta como uma década de globalização de modalidades de protesto social?
Numa das primeiras considerações que valorizaram o transnacionalismo nos anos Sessenta, Erik Zolov falou deles como um “repertório partilhado” e eu acho que esta ainda é a melhor forma de interrogar a dimensão global dos sixties. Não estou certa que possa ser contida numa década, contudo. O processo talvez tenha começado no período entre-guerras, com o uso que Gandhi deu aos meios de comunicação social na sua tentativa de exportar a sua estratégia de protesto anticolonial. Esta foi traduzida para os EUA com o Movimento dos Direitos Civis antes dos anos Sessenta. E depois temos a vaga de descolonização, após a Segunda Guerra Mundial, que partilhou várias modalidades de protesto. Mas podemos por certo dizer que nos anos Sessenta nós vemos o processo de globalização das modalidades de protesto social a atingir um outro patamar. Há formas de o demostrar.
A questão da periodização é sempre complicada. A organização da história em décadas, problemática. Como olha para as baias cronológicas comummente estabelecida para pensar os Sessenta e mais especificamente 68?
Este número contempla o trabalho de Marwick e a proposta dele [1958-1974] baseia-se num pressuposto válido, ainda que seja aplicável à experiência Ocidental. No Paquistão, que tenho trabalhado de forma mais intensa, esses anos são marcados por um estranho conjunto de pontos de apoio. No meu trabalho, com uma perspectiva alargada sobre os sixties, sustento que para os compreender temos de começar com o fim da Segunda Guerra Mundial, mas não diria que não incluiria todo esse período nos sixties per se. Para mim, eles começam, em espírito, com a constatação de que as promessas do pós-guerra não estão a ser cumpridas e quando as pessoas engendraram acções reivindicativas baseadas nessa premissa. Pode ter tido diferentes pontos temporais em sítios diferentes.
Quanto a “1968”, nunca gostei desta designação por vários motivos. Penso que força uma teleologia para as eras anteriores e posteriores a 1968 que limita a nossa compreensão e desvaloriza a natureza ad-hoc de muitos daqueles movimentos. De certa forma, rejeito a fixação em 1968, ainda que, para ser honesta, eu própria tenha participado na minha quota-parte de conferências e eventos comemorativos em cada ano que termina em 8.
Mesmo se nos limitarmos ao mundo Ocidental, os sixties são vistos de forma diferente. Em alguns espaços da esquerda e da direita são vistos como essencialmente um momento de ruptura. Para os primeiros, eles representam o abandono da centralidade da luta de classes. Acha que há paralelos?
Existem similitudes nesses dois polos do espectro na medida em que ambos se fundam numa visão simplificada dos sixties. Essa é uma ideia que a investigação académica tem procurado abalar, especialmente aqueles de nós que olham a partir de uma perspectiva global. Os sixties não foram apenas culturais, nem somente políticos, nem compreenderam apenas jovens em protestos e guerrilheiros do “terceiro mundo”. A luta de classes esteve muito presente em várias dimensões e ambientes, mas intersectou com outros factores identitários. Ao invés de apenas falar dos trabalhadores e trabalhadoras brancas nas fábricas, a luta de classes expandiu-se para incluir as mulheres negras que trabalhavam como amas ou o agricultor do Gana que cultivava cacau para exportação global numa nova economia pós-colonial, ou o trabalhador vietnamita que estava a ser realojado nos strategic hamlets que faziam parte do esforço de guerra americano. Isto não representou uma perda de centralidade da luta de classes – foi uma expansão da noção do que era a classe trabalhadora globalmente e uma matização completa do significado de classe. Estes não são o tipo de contextos de luta de classes que Marx imaginou, mas continua a ser luta de classes e não perceber isso traduz-se numa miopia infeliz sobre o que significa falar de luta de classes. Eu diria que a emergência do capitalismo neoliberal fez mais pela destruição da ideia de luta de classes do que qualquer coisa que aconteceu nos anos 60, por isso vejo sempre esta asserção como problemática.
E quanto àqueles que a vêem como uma época de dissolução moral?
Quanto à degradação moral, é também resultado de uma concepção estereotipada dos sixties que simplesmente não é aplicável à maioria do mundo neste período. Também não houve uma ruptura moral assim tão acentuada, houve antes uma negociação geracional de normas sociais característica de tantas outras épocas – os jovens nos sixties não estavam a testar mais as normas morais do que as flappers e os músicos de jazz testaram nos anos Vinte, por exemplo.
Por outro lado, há vários grupos sociais e “gerações” que acreditam que a década de 60 foi marcada por uma profunda transformação das atitudes e referências morais, sociais e culturais.
Acho que os Sessentas tiveram um efeito transformador, ainda que alguns dos eventos não tenham tido um impacto tão grande quanto as memórias deles nos fazem crer. Creio que o que os sixties representam é o potencial para a mudança social, moral e cultural, e que tal pode ser atingido se houver essa intenção. Ainda que nem todas as tentativas de mudança tenham perdurado, ou obtido sucesso sequer, o verdadeiro, duradouro impacto dos sixties foi a normalização da ideia de que nós podemos mudar o mundo, e que todos somos participantes num projecto para o fazer.
Muitas lutas culturais, em torno do género, da sexualidade e da raça estão a reemergir hoje com vigor. Há alguma semelhança com o que aconteceu nos anos 60?
Absolutamente. Tanto num sentido emancipatório, à medida que indivíduos se sentem no direito de formular reivindicações ao Estado e à sociedade em nome do respeito, dignidade e direitos que merecem, mas também nas contra-reacções. Os sixties deram origem a uma Nova Direita, e muitos conservadores e reaccionários beneficiaram de uma retórica de pânico moral. A onda de populismo de direita, que procura responder a uma suposta dissolução das normas sociais e culturais, espelha os sixties e as suas sequelas de múltiplas formas.