As rendas renováveis e “o eixo do mal”
O grande silêncio do artigo de Aníbal Fernandes é quanto ao futuro.
Aníbal Fernandes publicou neste jornal um longo artigo contra a política do Bloco sobre as rendas excessivas na eletricidade (“Em defesa das Energias Renováveis: basta de populismo”). Proponho nesta resposta algumas notas críticas, a partir de um conjunto de perguntas.
0. Declaração de interesses
Aníbal Fernandes é sócio de Carlos Pimenta no fundo Novenergia, que está a tentar vender a empresa Generg (488MW renováveis em operação em Portugal) a uma estatal chinesa. A obrigação desta declaração de interesses ficou por cumprir no artigo de Aníbal Fernandes. Começo por ela, por respeito aos leitores e leitoras.
Apesar desta omissão, Fernandes não prescinde do habitual anátema sobre interesses ocultos: os inimigos das rendas excessivas na energia são amigos do nuclear. O refrão é antigo mas não vale nada: o lobby nuclear está muitíssimo bem representado... no setor das renováveis. São precisamente as mesmas empresas que tanto investem numa como na outra indústria, mudando de discurso e de lobistas conforme convém para manter privilégios em ambas. Assim se passa também em Portugal: as ambientalmente beneméritas EDP, Endesa e Iberdrola, tão empenhadas no subsídio às eólicas, são também acionistas das centrais nucleares de Trillo e de Almaraz, que querem eternizar como uma bomba sobre o Tejo. Adiante.
1. As energias renováveis são caras?
Não. Elas tornam-se caras para remunerar o capital rentista. De facto, os consumidores portugueses poderiam pagar menos pela energia renovável sem com isso atrasar a transição para as energias limpas. Basta comparar com outros países. Partamos do relatório e contas da EDP Renováveis, empresa que, com apenas 12% da sua atividade em Portugal, obtém aqui 27% dos lucros. Tomando os preços da EDP-R como referência, se esta energia fosse vendida em Portugal aos preços médios que os produtores como a EDP-R praticam noutros países, os portugueses pagariam menos 400 milhões de euros ao ano (um terço de todo o sobrecusto da produção renovável). O que é caro não é a energia renovável, é mesmo a renda excessiva.
2. Reduzir o subsídio condena a transição energética?
Os custos energéticos das famílias portuguesas são dos mais altos da Europa e os índices de pobreza energética, com morte excessiva no inverno, também. Esta é uma preocupação central do Bloco, que Fernandes nem refere. Ora, se o consumidor português passasse a pagar as renováveis aos preços espanhóis, a sua fatura cairia 60 euros/ano, em média. Diga-se, aliás, que a proposta bloquista de uma contribuição dos produtores renováveis só parcialmente corrigia este abuso, reduzindo a fatura média em 40 euros/ano.
A grande maioria das centrais está completamente amortizada e nenhuma carece deste subsídio abusivo para ser rentável. Em Espanha, a redução de subsídios às renováveis ocorreu em 2013 e o país não ruiu num gigantesco apagão. Diz Fernandes que “nos últimos 5 anos não houve um cêntimo de investimento estrangeiro em Espanha na área da Energia”. Não é preciso ir muito longe, nem muito atrás, para desmentir a fake news: a própria EDP está inscrita para mais 93 MW eólicos remunerados a preços de mercado (“EDP Renováveis reforça em Espanha” - Expresso, 15 jan 2016). E não está sozinha. Em 2016 e 2017, realizaram-se em Espanha três leilões que acrescentaram 8700 MW de nova capacidade renovável e há outros 23 mil MW em diferentes etapas de planeamento.
Quanto à litigância das empresas, ela não teve até agora custos de monta para o Estado, que tem vencido nos tribunais espanhóis. Em qualquer caso, as medidas espanholas não são comparáveis com a contribuição proposta pelo Bloco. O Estado espanhol impôs uma alteração contratual (uma taxa de "rentabilidade razoável" definida por lei com efeitos retroativos). O que o Bloco propôs há um ano foi uma contribuição sobre a parte subsidiada do preço de venda, a vigorar até à eliminação do insustentável défice tarifário.
3. O escândalo da extensão dos subsídios
O grande silêncio do artigo de Aníbal Fernandes é quanto ao futuro. Fernandes lista as sucessivas vagas de contratos ao longo dos anos, mas omite a decisão tomada em 2013 pelo governo PSD/CDS de prolongar a subsidiação às eólicas para além do prazo contratual. Ora, se o esquema não for revertido, a dimensão da desgraça para os consumidores pode rondar os 1000 milhões de euros.
O negócio é simples: para conter aumentos da fatura, o ministro Álvaro Santos Pereira propôs uma "contribuição voluntária" ao setor eólico (cerca de 20 milhões anuais pagos pelo conjunto das empresas entre 2013 e 2020), que depois usou como pretexto para o isentar da CESE, a contribuição extraordinária paga por quase todo o setor elétrico. As empresas eólicas apressaram-se a aderir.
Aderiram todas, e não era para menos. Em troca da “contribuição”, foi adiado por sete anos o fim dos preços subsidiados, previsto para 2020. Assim, em vez do preço de mercado (cerca de 48€/Mwh nas previsões oficiais), os produtores nunca receberão menos de 74€/Mwh. Este período adicional de subsídio carrega nas faturas mais de 1100 milhões de euros entre 2020 e 2027. Descontada a "contribuição", são mais de 900 milhões de euros adicionais sobre os ombros dos consumidores. O atual ministro da Economia já reconheceu que, onde havia uma renda, ficou "renda e meia". Mas, como está à vista, a realidade é várias vezes pior. É por isso justificado que, além de uma contribuição sobre a renda excessiva cobrada pelas renováveis, se reponha a data prevista para o seu fim - 2020 e não 2027.
Como resulta claro, o artigo de Aníbal Fernandes não é, afinal, “em defesa das renováveis”. É um texto de parte interessadíssima na manutenção das rendas excessivas pagas às elétricas. Ora, a necessária promoção de novos avanços em tecnologias renováveis, tal como o apoio à produção solar descentralizada ou à eficiência energética, exige a libertação dos recursos que hoje se concentram nos lucros abusivos do setor elétrico. Que este tema se torne um debate nacional, eis o que realmente preocupa os rentistas.