Todas as manhãs, o velho Youssef vai ao jardim colher ervilhas. Chegado à sala, onde da salamandra ainda emana o calor da lenha da madrugada, coloca as vagens num alguidar e começa a descascá-las para a Lia, a nossa filha de 15 meses. Depois, sentado na poltrona de que é dono e senhor, pega-a ao colo com a suavidade que só os avôs sábios sabem ter e vai-lhe passando, um a um, os grãos verdes brotados em terra palestiniana. Na mesa, há chá, pão e labneh, um dos queijos mais antigos do mundo, temperado em azeite.
Estamos em Beit Ummar, uma vila a escassos quilómetros de Hebron, a cidade mais problemática da Cisjordânia, onde os muros da escola têm pintadas as caras dos mártires adolescentes caídos durante a Intifada. Mas em casa de Youssef respira-se tranquilidade. Ele, a mulher e os cinco filhos tratam-nos como parentes, deram-nos um quarto alcatifado e até montaram uma rede de baloiço para a Lia no quintal. Do terraço, a que Youssef insiste em levar-me todos os fins de tarde, vê-se o Mediterrâneo que banha Telavive, que ele bem conhecia quando, enquanto camionista, transportava frutas e legumes para Gaza. Depois da construção da barreira de separação entre Israel e a Cisjordânia, em 2003, o mar ficou reduzido a uma linha no horizonte que só daqui pode vislumbrar.
À noite, visitamos a sua filha mais velha e o neto no campo de refugiados de Al-Arroub. Existe há 70 anos: já não é um acampamento, é bairro de tijolo e cimento. Ignorando os dois soldados armados que patrulham a entrada, a Lia e o pequeno Ahmed pulam, descontrolados, nos sofás arabescos. Mais um serão nos territórios ocupados.
Nove folhas arrancadas ao calendário e estamos em Netanya, 30km a norte de Telavive, com Gilad, engenheiro hidráulico, a acender uma vela e a entoar um harmonioso cântico para dar com a família as boas-vindas a mais um shabbat, o dia de descanso semanal no calendário judaico. À mesa, a acompanhar uma deliciosa sopa de lentilhas, frango e massa, somos brindados com uma história familiar contada pela mãe de Gilad, que veio nascer a Israel porque os pais fugiram da Alemanha logo nos primeiros anos da ascensão nazi. Foi nessa época, no início dos anos 1930, que os pioneiros sionistas ergueram Netanya a partir de dunas arenosas, irrigaram-na, cultivaram-na e transformaram-na ao longo das décadas numa das maiores cidades de Israel e sede de algumas das principais empresas tecnológicas. Julia, mulher de Gilad, alemã ateia como Ilka, a minha namorada, é relações públicas no Ebay. As três filhas do casal são evidências da ironia da história: judias alemãs, com avós carrascos e vítimas da Segunda Guerra Mundial, falantes de hebraico e alemão. Filhas do Holocausto, mas também de Israel 2.0., país que mais incuba startups depois dos EUA.
Gilad gosta que o acompanhemos a passear o cão na zona agrícola que circunda a sua vivenda, decorada com dezenas de bandeirinhas de Israel, assinalando o 70.º aniversário da nação hebraica. Explica-nos a complexa engenharia necessária para irrigar esta região árida e, no topo de um barranco, aponta-nos a pujante expansão de Netanya, que com as suas torres espelhadas ameaça transpor a barreira da autoestrada para engolir este arrabalde bucólico e sereno. A cidade, habitada por um mosaico étnico que vai desde eslavos a etíopes, transformou-se numa das maiores estâncias balneares do país. Os seus 14km de costa de areia fina, praias animadas com campos de futebol, basquete, vólei, skateparks, ginásios e esplanadas, são um chamariz para o turismo interno e além-fronteiras, com destaque para russos e franceses. O mar é tranquilo e tépido. Só a silhueta dos arranha-céus nas falésias macula o cenário.
Sábado é dia de piquenique. Orgulhoso do percurso do seu país, Gilad leva-nos até aos jardins de Ramat HaNavid, um memorial ao Barão Edmond de Rothschild, que ao adquirir terras a árabes nesta zona, pantanosa e infestada de mosquitos maláricos, se tornou num dos percussores do sionismo - “O Famoso Benfeitor”, como é conhecido. Para além da faceta histórica, o jardim é de uma beleza exuberante, com centenas de espécies de flores, árvores e ervas aromáticas a salpicarem estátuas e fontes aos pés do Monte Carmelo. Lia, que há uns dias brincava com árabes num campo de refugiados, corria agora com três meninas judias diante do túmulo de um dos homens que abriu caminho para a fundação de Israel e para a expulsão dos palestinianos em 1948.
Brincar da mesma maneira com israelitas e palestinianos que, geralmente, nunca têm a possibilidade de coexistência. Esse é o privilégio de qualquer criança estrangeira que pisa estas terras. E a forma de mostrar que a inocência vem antes do preconceito.
Este acesso à vida familiar de judeus e muçulmanos não estava previsto. Poucos dias antes do voo para Telavive, fomos surpreendidos pelos preços exorbitantes dos hotéis em Israel num mês de Abril carregado de festas e feriados – Pesach (celebração do êxodo dos judeus do Egipto para Israel), Páscoa, Shoah (Dia Memorial do Holocausto) e o Dia da Independência. Íamos viajar um mês e, com aqueles valores, rebentaríamos o orçamento em menos de uma semana. Assim, tivemos de procurar alternativas. O couchsurfing surgiu à cabeça: ambos já o tínhamos experimentado com bons resultados mas, desta vez, íamos com a bebé. Estariam os anfitriões disponíveis para aceitar o choro nocturno de uma criança? Para apanhar os cacos de copos e bibelôs partidos? Na pesquisa, descobrimos que havia um parâmetro “children-friendly”. E que alguns dos anfitriões até tinham catraios em casa. Foram esses que receberam primeiro os nossos pedidos. Sem saber, estávamos a ingressar numa viagem pelos lares da Terra Prometida: a melhor maneira de conhecer diferentes pessoas e culturas, comidas e monumentos, opiniões políticas e religiosas, enfim, entender a viagem. E entreter a Lia.
Não foi fácil explicar esta opção aos familiares. Já uma ida à região numa altura em que os telejornais mostravam as manifestações em Gaza era difícil de conceber. Mais ainda, eliminando o conforto para pernoitar em sofás de estranhos. Mas quem já esteve no país sabe que, evitando-se as áreas conflituosas, se trata de uma zona segura. Longe de nós colocar a nossa filha numa situação arriscada. Quanto aos sofás, revelaram-se mais confortáveis do que muitos quartos de hotel.
Um terraço na cidade louca
A vasta varanda do apartamento de Moishe Kerber, de 28 anos, era razão suficiente para termos ido a Israel. Fica na Rua Levinski, no sul de Telavive, numa zona marginalizada mas em rápida transformação graças ao processo de gentrificação que se alastra do vizinho bairro hipster de Florentin. Tem três sofás velhos, uma mesa com um tabuleiro de xadrez, várias garrafas de cerveja vazias e plantas em vasos lascados. Mas não era a decoração que a embelezava: era a brisa morna que a varria e os sons que lhe chegavam das buzinas e das melodias do Médio Oriente. A casa de Moishe não estava na lista de receptividade para crianças. Ele, solteiro, produtor de televisão, amante de whisky e bicicletas, acudiu a um pedido de alojamento que publicámos numa página de Telavive no Facebook. Filho de pai russo e mãe americana, cresceu em Indiana, nos EUA, optando por Telavive para iniciar a vida adulta. Frequentou o exército, como todos os israelitas, e participou na guerra em Gaza em 2014. Este era um tema que o incomodava – confessou ter perdido amigos mas não se estendeu sobre as suas acções enquanto militar. Guardava uma bala e óculos de visão nocturna. A sua inaptidão inicial com a Lia terminou com os dois a jogarem futebol no terraço.
Telavive é uma bolha de liberdade e de laicismo no Oriente Próximo. À “cidade branca”, património mundial pelos seus edifícios de arquitectura Bauhaus, confluem ateus e pecadores, gays e intelectuais, empreendedores e pacifistas. Podem ser vistos a passear de trotineta e de auscultadores no jardim central da Avenida Rothschild, numa festa bissexual de uma discoteca árabe em Jafa ou de biquínis reduzidos e tatuagens na praia.
“A praia é o lugar a que toda a gente vai depois do trabalho”, diz Moishe. “Uns calções de banho e uma prancha de surf fazem parte dos equipamentos indispensáveis a qualquer morador desta cidade.” É, portanto, o melhor ponto de partida para conhecer a capital de Israel. Um mergulho nas águas cálidas, enquanto a Lia roubava baldes e ancinhos a outras crianças, auspiciava um mês épico. A sul, as praias têm menos gente, enquanto as do norte são mais populares. No milenar porto de Jafa, bons restaurantes de peixe escondem-se em vielas misteriosas, encimadas pela mesquita Al-Bahr (Mesquita do Mar), onde as mulheres dos pescadores árabes rogavam o seu regresso da faina.
Após um sumo natural de romã, o passeio prosseguiu no charmoso bairro de Neve Tzedek, que já cá estava antes de Telavive nascer, há 109 anos. Há várias galerias, pequenas livrarias e esplanadas que servem vinho de qualidade. Daí, uma caminhada de 15 minutos levou-nos ao mercado de Carmel, o epicentro da vida comercial em Telavive. Tudo se compra e tudo se vende: morangos carnudos, grão-de-bico para o húmus, pão quente, queijo de cabra e muitos vegetais frescos, com uma prevalência de beringelas. Há ainda t-shirts e quadros com Donald Trump e Vladimir Putin vestidos de mulher. Telavive não perde uma oportunidade para se assumir como capital da tolerância numa região conhecida pelas restrições às liberdades individuais.
O Parque Yarkon, a norte, junto aos museus Palmach (história/política) e Eretz (arqueologia) faz as delícias das crianças com dezenas de parques infantis e gaivotas para navegar no rio.
Perto de casa, o mercado gastronómico de Levinski oferecia uma excelente selecção de queijos frescos, azeitonas e especiarias e ainda pequenos restaurantes com húmus e falafel divinais. Ao fim da tarde, a esplanada do Toni & Esther enchia-se de clientes ávidos de aperitivos e de cerveja nacional em horário promocional.
Moishe chegava do trabalho todas as noites pelas 23h. Sentávamo-nos nos sofás descarnados a discutir a actualidade de Israel em animadas tertúlias sobre política e religião, em que o meu anfitrião me elucidava sobre pormenores para os quais eu não encontrava explicação. Era um dos interlocutores mais isentos e esclarecidos que jamais encontrara no país. Explicou-me as razões de os judeus ortodoxos estarem livres de serviço militar, a simbologia da indumentária das diferentes correntes judaicas (“os sionistas usam quipá azul”), como é que nasceu um batalhão transexual no exército, o que se celebra em cada feriado. Naquela varanda, aprendi mais sobre Israel do que na minha estadia anterior.
A pérola do Monte Carmelo
Escolhemos mal o dia para chegar a Haifa. É feriado, último dia de Pesach, não há transportes públicos e escasseiam os táxis, pelo que tivemos de empurrar o carrinho de bebé encosta acima até ao apartamento de Dima e Schlomit, os nossos cicerones. Há cidades íngremes e depois há Haifa, que só os deuses impedem de resvalar do Monte Carmelo. Felizmente, o casal reconheceu o nosso esforço e premiou-nos com um jantar comemorativo de borrego e arroz de passas regado com vinho branco, na companhia de um par amigo e de Lenny, o miúdo da casa, de dois anos, que logo quis mostrar à Lia a sua tara por pistas de comboios. Da janela, uma panorâmica do mar rubro ao entardecer.
Ali perto, o Mosteiro de Stella Maris, sede mundial dos cristãos carmelitas, assinala a caverna onde o profeta Elias se refugiou na sua luta contra os profetas de Baal. É uma igreja pequena mas extremamente bela, hoje local de peregrinação. Logo em frente, chegam e partem os teleféricos panorâmicos para a costa. No entanto, é a mais recente das religiões monoteístas que ocupa um lugar central na cidade: os Jardins Suspensos de Haifa, ou os Terraços da Fé Bahá'í, desfilam do topo à base da montanha, dispondo jardins coloridos e frondosos por socalcos em redor do Santuário de Báb, percussor desta crença nascida no actual Irão. Descalços e em absoluto silêncio, visitámos o mausoléu, pedindo a Báb que a Lia não acordasse aos berros. Lá fora, a vista desfiava-se pelo bairro da Colónia Alemã até ao mar, delimitada por flores e sebes. Tudo evocava harmonia, equilíbrio e limpeza.
Com 15% de árabes, Haifa é uma das cidades mais multiculturais de Israel e isso pode ser visto no Fattoush, um ilustre restaurante palestiniano com aroma a açafrão e vapores de narguilé, ou em Wadi Nisnas, o quarteirão árabe, com um mercado tradicional onde fomos surpreendidos por um carro forrado a carpetes e pelos deliciosos knafehs, um doce à base de queijo, pistácios e uma espécie de aletria, embebido em xarope de açúcar. À hora da oração islâmica, um grupo de árabes – rapazes e raparigas, provavelmente cristãos - deliciava-se com uma sandes de bacon, salame e verduras num talho local, acompanhada por shots de whisky trazidos pelo proprietário, Abdulkarim: “Somos árabes israelitas, solidários com a Palestina mas orgulhosos de viver aqui. Principalmente em Haifa, que é uma cidade que aceita todos os povos e religiões”, diz.
De regresso a casa, ficámos a saber mais sobre Dima e Schlomit. Ele veio de Moscovo com a família em 1991, depois da queda da União Soviética, enquanto ela pertencia a um clã religioso originário do Médio Oriente. Aquando do casamento, experimentaram o mesmo problema que afecta milhares de casais hebraicos: apesar de se considerar um Estado democrático e secular, só se podem casar em Israel judeus com as origens devidamente documentadas. Schlomit não teve qualquer problema em fazê-lo. Porém, Dimitri (Dima) e os seus parentes tiveram de ocultar publicamente as suas crenças religiosas durante o regime comunista e não tinham como provar que eram judeus a sério. “Nem queria acreditar quando eu e a minha mãe fomos chamados a um tribunal especial para provarmos que éramos judeus. A ela perguntaram-lhe se sabia falar iídiche [a língua dos judeus asquenazes, do leste europeu] e a mim perguntaram-me quando tinha sido circuncidado. É inaceitável”, afirma Dima. Acabaram por conseguir. Muitos não têm a mesma sorte e preferem fazê-lo em Praga ou em Nicósia.
Todas as manhãs, Lenny e Lia ficavam a brincar com os comboios e com os gatos e nós podíamos dormir mais um bocado no sofá.
Os avós do kibbutz
O mundo é um lugar estranho. Estávamos no monte Bental, nos Golã israelitas, com vista desimpedida para a Síria. No dia anterior, a 60km dali, tinha havido um ataque com armas químicas. Mas ali as crianças corriam por entre as flores e os turistas pagavam cinco shekels para ver a Síria por binóculos. Dizem que dá para ver vacas a pisarem minas e a irem pelos ares. Da última vez em que estive na Síria já havia armas mas não minas. As pessoas andavam aflitas mas as vacas pareciam em paz. Meio milhão de sírios já não estão. Guerra total. Horas atrás, aqueles céus tinham sido rasgados por aviões israelitas que bombardearam uma base iraniana. Os de Trump seriam os próximos. A fronteira estava em alerta vermelho. Uma cor a que os israelitas estão habituados: há dezenas a fazer caminhadas, jovens a rezar na montanha e visitantes a beber café na esplanada de um restaurante chamado Coffee Annan (nuvem, em hebraico, mas também um trocadilho com o nome Kofi Annan, do ex-secretário-geral das Nações Unidas).
Chegámos a este bizarro mundo de carro alugado, depois de passar por Tzfat, um local sagrado do judaísmo completamente colonizado por ortodoxos e com um centro pejado de edifícios antigos e de galerias de arte judaica. Os Golã são uma espécie de Alpes de Israel – remotos, silenciosos e verdejantes. Terra anexada à Síria em 1967, na Guerra dos Seis Dias, e nunca mais devolvida. Contudo, o ambiente é bem diferente do que se vive na Cisjordânia: os israelitas que aqui residem também são considerados colonos mas não são ideológicos e praticamente não há árabes, só druzos, que gozam de alguma autonomia e se adaptaram bem ao jugo de Telavive.
Recebemos guarida na pitoresca moradia de Yosefa e Dudi, no kibbutz de El Rom, que por estar implantado a 1000 metros de altitude tem noites frias só combatíveis com cobertores. Os sexuagenários foram criados em kibbutz – comunidades agrícolas de ideologia sionista e socialista – numa época em que todos recebiam o mesmo salário, as colheitas eram divididas pela comunidade e as crianças viviam juntas na mesma casa. “Hoje é tudo diferente”, diz Yosefa, assistente social, com nostalgia. “O lema era 'trabalha o máximo que conseguires, recebe o que houver'. Mas as pessoas viviam neste sistema capitalista e fartaram-se disso. Hoje ainda há resquícios dessa génese mas quase todos têm trabalho fora de El Rom.” As famílias do casal pertenciam a dois grupos paramilitares rivais – o Haganah e o Irgun – que ofereceram resistência aos britânicos durante a sua vigência na Palestina e desempenharam um papel preponderante no conflito contra os árabes em 1948. Dudi trabalha hoje na construção de jardins, mas na juventude foi cowboy, chegando inclusivamente a visitar ranchos no Texas. Combateu nos Golã na Guerra de Yom Kippur, em 1973, quando estava noivo de Yosefa, e acabou por trazê-la para a reconstrução do kibbutz entretanto destruído. Ficaram até hoje.
A hospitalidade e amabilidade com que nos receberam não correspondem ao estereótipo de vaqueiros e de descendentes de milicianos. Yosefa e Dudi são cultos, viajados e foram extremamente dóceis com a Lia, a quem brindaram com o caixote de brinquedos dos próprios netos. Ele, devoto da gastronomia druza, levou-nos ao Sulthan, um restaurante da vizinhança onde comemos a melhor tehina (pasta de sésamo) de que há memória. Apesar das diferenças étnicas e religiosas, Dudi e o dono do estabelecimento eram grandes amigalhaços. No fim, um knafeh de comer e chorar por mais.
El Rom era a base perfeita para percorrer os Golã. Em 15 minutos, estávamos nas magníficas Cascatas de Banias, um jorro de água conduzido desde o colossal monte Hermon, onde no Inverno se faz esqui virado para o Líbano e para a Síria. Ficam ao lado das ruínas da cidade perdida de Dan, antigo feudo de Herodes e onde Jesus, escondido nas cavernas, quis saber dos discípulos o que pensavam dele. Estrada acima, as ruínas da Fortaleza de Nimrod, um bastião com mais de 800 anos que viu mais guerras do que Gengis Khan. Entre o nevoeiro e as rochas, os Golã escondem segredos milenares, mesquitas e sinagogas, ruínas, bunkers, medos e glórias. Na cidade druza de Majdal Shams, onde uma intransponível vedação separa Israel da Síria, as famílias druzas afastadas pela Guerra dos Seis Dias costumavam, antes do advento dos telemóveis, gritar de uma montanha para a outra para anunciarem mortes e casamentos. Ainda hoje há quem vá para o vale de megafone.
Deixámos os Golã a caminho do mar da Galileia – esse mesmo, onde, segundo a Bíblia, Cristo caminhou sobre a água – a tempo de umas braçadas antes do cair do sol. Uma luz quente coloria as escarpas dramáticas a leste do grande lago. Já sabia que andar sobre a água só estava ao alcance de um predestinado, mas desconhecia o calvário de passar descalço sobre as pedras pontiagudas da orla.
Pernoitámos no tapete de uma escola de ioga em Degania, o primeiro kibbutz de Israel, fundado em 1912, quando 10 homens e duas mulheres se fixaram no local anteriormente ocupado por uma aldeia árabe. Amos deixou a chave escondida à entrada e colchões macios preparados para a Lia. Chegou tarde, vindo de um biscate bizarro: actor de pequenos filmes para uma promissora startup que pretende criar uma base de dados com imagens para todas as situações possíveis – desde sequestros a perseguições de carro – para serem usadas nas redes sociais e em publicidade. Uma nova ferramenta para fake news?
Após a Lia ter chapinhado nas águas em que Jesus foi baptizado – e onde turistas de todas as latitudes vêm fazer o mesmo – viajámos a tarde inteira paralelos ao impactante Vale do Jordão, uma bênção de fertilidade no coração do deserto. A maioria dos vegetais que abastecem Israel vêm daquelas várzeas e não surpreendem todos os esforços que Telavive despende para desalojar ilegalmente os agricultores palestinianos.
Chegados ao mar Morto, procurámos encontrar uma nesga de terra que não estivesse apropriada por privados, de forma a não pagarmos para boiar nas salgadíssimas águas do lago mais baixo do mundo. Impossível! Não importa: o reservatório está a perder continuamente volume e mais tarde ou mais cedo desaparecerá. A experiência valia os 15 euros. Mas dispensava as excursões de turistas russos e príncipes das Arábias que transformaram o banho numa espécie de pista de carrinhos de choque flutuantes.
Façam húmus, não muros
Exceptuando os dias preguiçosos em Beit Ummar, a nossa base na Palestina foi a casa do chileno Andrés Cuche em Doha, um bairro conservador de Belém. Andrés, voluntário pela causa palestiniana na ONG Saint-Yves, é irmão de um velho amigo de Santiago do Chile e rapidamente nos mostrou as mercearias do bairro – onde os vendedores chegam a oferecer peças de fruta – e os sítios para comprar sandes de falafel a um euro no campo de refugiados de Dheisheh, um dos locais mais gaseados do mundo. As noites eram passadas em castelhano a conversar sobre as questões irresolúveis do conflito israelo-palestiniano.
Belém é a localidade mais turística da Cisjordânia. No entanto, poucos são os visitantes que ficam a conhecer a cidade: em Jerusalém, são metidos em autocarros e atirados rapidamente para a Igreja da Natividade, suposto local de nascimento de Jesus, e para a Capela da Gruta do Leite, local que a Bíblia indica como o refúgio encontrado pela Sagrada Família durante o Massacre dos Inocentes, cujo chão ficou para sempre branco quando uma gota de leite caiu do peito de Maria, sendo depois transportados de regresso aos hotéis israelitas.
Recentemente, a cidade ganhou mais uma atracção para todos aqueles que se interessam pelo conflito. No Walled Off, o hotel que o artista britânico Banksy fundou de frente para a muro que separa a Cisjordânia de Israel, encontra-se um museu interactivo especializado na história da ocupação, em que os visitantes são confrontados com vídeos explicativos, documentos que ilustram o regime de apartheid vivido pelos palestinianos e destroços retirados de casas destruídas. Destaque para um telefone que toca incessantemente: ao atendê-lo, o visitante é confrontado com a mensagem que os soldados israelitas costumam transmitir antes de se apropriarem de uma residência: “A sua casa vai ser destruída devido a fins militares. Tem dez minutos para sair.” A recepção do hotel conta ainda com várias obras magníficas do próprio Banksy, que assinou numa parede de Jerusalém o famoso stencil de um manifestante a arremessar um ramo de flores.
O muro tem frente e verso. Do lado israelita está o Túmulo de Raquel, sepulcro sagrado para judeus, cristãos e muçulmanos, agora interdito aos últimos, destino de peregrinação para devotos da Torah. Na parede palestiniana, desenhos de motivações políticas de vários artistas nacionais e internacionais. Entre milhares de inscrições, aquela que se tornou viral: “Make Hummus, Not Wars” (Façam Húmus, Não Muros). Os donos do restaurante Afteem, refugiados de 1948, seguiram este conselho e fazem a pasta de grão de uma forma sublime. À noite, o bar Bandido é ponto de encontro para cerveja e conversa.
Belém revelou-se uma excelente plataforma para visitar outras cidades da Cisjordânia. As carrinhas de nove lugares, única forma comunitária de deslocação dentro das áreas sob controlo da Autoridade Palestiniana, demoram mais de uma hora a percorrer os 30km para Ramallah, mas permitem experienciar o quotidiano da vida palestiniana: a passagem pelos checkpoints, os caminhos sinuosos que se desviam de Jerusalém, as paisagens dramáticas, a proliferação de sucateiras e de ferro-velho, os diferentes paradigmas nas zonas A, B e C, debaixo de diferentes legislações.
Em Ramallah, capital de um país sonhado, não perder o Museu Yasser Arafat, onde se encontra o túmulo do antigo líder da Fatah, o anexo em que viveu dois anos debaixo de cerco e fotos e vídeos sobre a resistência palestiniana. Em Nablus, no norte, o queixo cai perante a sumptuosidade das montanhas e o estômago abre-se às tentações do mais tradicional dos mercados. Hebron é diferente de tudo o resto. A história dos povos que acreditam num só Deus começou com Abraão em Hebron. Por isso, é tão disputada e cobiçada: a medina árabe está rodeada por colonatos hebraicos. De um lado e do outro, os apoiantes mais radicais. O Túmulo dos Patriarcas é o único local de culto híbrido: metade sinagoga, metade mesquita. Nele estão as sepulturas de Abraão e Sara, Isaac e Rebeca, Jacó e Lea e até de Adão e Eva. É sítio de poucos sorrisos. Pelo menos, até a Ilka ter coberto a Lia com uma túnica islâmica, provocando gargalhadas entre os fiéis.
Antes de partir, um encontro com o pacifista palestiniano Issa Amro, sitiado entre colonatos em Beit Hadassah, um assentamento de sionistas radicais colado ao centro de Hebron. Issa tem pulseira electrónica, 18 casos em tribunal contra ele, maioritariamente por desobediência, e está convencido que não tarda irá preso um ou dois anos. Vive com a família nas instalações da Youth Against Settlement, a instituição que dirige há mais de uma década à revelia da Autoridade Palestiniana e do Estado israelita. “Agora já não nos tratam por nomes mas por números, como os nazis faziam aos judeus”, acusa. “A vida nunca foi tão má na Cisjordânia como hoje. Os colonos estão a viver os seus melhores dias”. Entretanto, a entrevista foi interrompida por Lia, que se veio agarrar às minhas pernas. Olhei para os filhos de Issa e imaginei como seria estar na iminência de ser preso apenas por manifestar a minha opinião. Esses pensamentos assombravam-me quando deixámos Hebron, já de noite.
Nenhuma visita a Israel fica completa sem Jerusalém. Mais que qualquer profeta ou mensageiro, aquelas muralhas morreram e ressuscitaram vezes sem conta. Com o propósito maior de mostrar a todos os que não acreditam que a fé existe e há-de engoli-los. Uma voz assalta o agnóstico quando pisa a cidade de Deus: “Podes pensar que todos à tua volta são tolos mas rende-te porque são muito mais que tu.” Cúpula da Rocha, Muro das Lamentações, Igreja do Santo Sepulcro – são apenas três dos magníficos baluartes que marcam a fé dos homens e a guerra das civilizações. Jerusalém comove e revolta. Ninguém fica indiferente. Nem mesmo quando se vêem aberrações como clérigos a enviar SMS encostados à sepultura de Cristo ou fiéis a gravar vídeos enquanto rezam com a testa no mármore. Uma espécie de alegoria para a chegada de um Deus com ecrã táctil.
Na praça adjacente à sinagoga Hurva, no centro de Jerusalém, tivemos uma das raras más experiências da viagem. A Lia tentou aproximar-se de crianças de orientação ortodoxa que brincavam em conjunto mas, assim que se aproximava, eles afastavam-se. Como se tivessem receio. Eu e a Ilka concluímos que, devido à indumentária muito marcada – com as tranças, os chapéus e as saias compridas –, aqueles meninos e meninas, membros de uma comunidade muito fechada, não estavam habituados a conviver com crianças com t-shirts dos Rolling Stones.
Acontecimento ofuscado pelo entardecer a partir do Monte das Oliveiras; a velha Jerusalém a surgir de caras por cima da gigantesca necrópole habitada por gatos vadios que saltavam de campa em campa. Mensagem: as pessoas são mortais, Jerusalém é imortal, dos gatos ninguém sabe.
Um final atribulado
A descontracção dominou os últimos dias passados em Herzliya, às portas de Telavive, em casa de Hagay e Keren, de cuja filha Elle a Lia se tornou rapidamente compincha. Passavam as tardes de intenso calor na piscina da marquise.
Dali, voltámos à casa de Moishe, na Rua Levinski, para o último dia antes do voo, marcado para a madrugada. Lamentavelmente, apercebi-me de que tinha perdido as chaves de casa somente quando chegámos ao patamar do quinto andar pelas 22h. Tínhamos tudo dentro do apartamento. Moishe não abria a porta nem atendia o telemóvel. Uma situação tramada que nos podia levar a perder o voo. Entrámos em ansiedade, com excepção da Lia, que dorme mesmo em situações de stress.
Pedimos auxílio aos vizinhos do lado, na esperança de se conseguir saltar de varanda para varanda. Era demasiado perigoso. Naquele apartamento, viviam 10 indianos que se disponibilizaram prontamente para tentar abrir a porta com cartões bancários e facas de cozinha. Nada feito! Quando as esperanças começavam a esmorecer, Moishe apareceu. Era 1h da manhã e vinha de um passeio de bicicleta. Deparou-se com dez indianos a esfaquear-lhe a fechadura, dois hóspedes desesperados a bufar diante de uma ventoinha e um bebé a dormir. Não se chateou. Pediu desculpa por ter chegado tarde, não nos deixou pagar a chave e convidou-nos a voltar quando quiséssemos.
Já ouviram falar da hospitalidade do Médio Oriente? É isto. Os judeus e os árabes são dos povos mais solidários para os visitantes. Só falta que o sejam uns com os outros.