Vinte anos depois, Murphy Brown volta esta quinta-feira à luta
A nova temporada da comédia sobre jornalismo e feminismo estreia-se agora nos EUA. Nas filmagens, Candice Bergen e Diane English, Murphy, Frank e Corky estão à espera que Donald Trump veja a série.
“Sou sempre eu”, diz Jake McDorman, abanando a cabeça exasperado. Já entrou várias vezes na casa de Murphy Brown durante a gravação ao vivo (com público a assistir), mas desta vez esqueceu-se de acender as luzes. O que acontece a McDorman, que interpreta o papel Avery, o filho de Murphy Brown que entretanto cresceu, é desculpável – pois é só o terceiro episódio que o actor filma ali. A protagonista da série, Candice Bergen, passou uma década a mandar piadas e a ter conversas importantes numa casa tal e qual esta.
O cenário foi feito para imitar o original. Depois das escorregadelas de McDorman, Bergen inclina-se para lhe dar um abraço. É um carinho que diz: já todos estivemos no teu lugar. E estamos tão contentes que aqui estejas. O público no estúdio também está contente por eles lá estarem, por verem a reunião do grupo do programa ficcional de notícias FYI 20 anos depois de Murphy Brown ter saído do ar. Neste reboot, que se estreia esta quinta-feira nos EUA na CBS, a personagem de Candice Bergen apresenta o programa Murphy in the Morning, que concorre com o programa do seu filho Avery num outro canal.
Entre cenas, o público está a ver uma enorme festa de reunião do elenco de Murphy Brown. Um animador oferece bonés azuis que proclamam Make America Murphy Again [num trocadilho com o lema da campanha de Trump “Make America Great Again”] a quem souber quantas secretárias de Murphy se despediram durante uma década de série. “Noventa e três!”, diz um homem que parece demasiado jovem para ter visto a série quando ela passou originalmente na televisão. Homens de meia-idade são também encorajados a fazer o seu melhor falsetto de Natural Woman, o êxito de Aretha Franklin que se tornou a canção da série nos anos 1990.
No episódio que estava a ser filmado, Murphy e o seu elenco debatem se devem ou não entrevistar uma personagem do tipo de Steve Bannon [o ex-assessor de Donald Trump]. Sim, a série vai estar outra vez muito ligada à actualidade. Em 1992, Murphy e o seu amigo Frank Fontana (Joe Regalbuto) viram o discurso do então vice-presidente Dan Quayle em que este atacava a jornalista ficcional por glamorizar as mães solteiras e “gozar com a importância dos pais” ao ter um filho fora do casamento. Uma Murphy, desarranjada e que tinha acabado de ser mãe, perguntava a Frank: “pareço-te glamorosa?!”. Não parecia.
"Só uma série de comédia"
Murphy Brown estava à frente do seu tempo no que tocava à política sexual, incluindo a sua representação franca do que é ser mãe solteira – algo que se tornou mais comum desde então. Mas também era raro que uma sitcom se tornasse parte do debate político do mundo real – e depois o incluísse nos papéis das suas personagens. O choque entre Quayle e Murphy chegou à primeira página do New York Times e Regalbuto lembra-se hoje de como ficou perplexo quando a rádio pública NPR lhe pediu uma entrevista. “Somos só uma série de comédia”, lembra-se de lhes ter dito.
A série não tinha um percurso anterior para saberem como responder. “Podíamos atacar [Dan Quayle] e algumas pessoas iam dizer ‘Cometeram um erro; não foram suficientemente longe’. Ou ‘Foram longe demais’. Não havia uma resposta correcta”, acrescenta o actor. “Colocou-nos numa situação muito incomum.”
Hoje, a série regressa num mundo em que as fronteiras entre cultura popular e política colapsaram. Já quase nada é “só uma série de comédia”, dos talk shows nocturnos ao Saturday Night Live, passando por Veep. Nunca as opiniões sobre entretenimento de um ocupante da Casa Branca nunca foram tão audíveis. E o reboot de Murphy Brown está a capitalizar isto: a estreia começa no Dia das Eleições de 2016 e há episódios sobre nacionalistas brancos, o movimento #MeToo, a imigração e as eleições intercalares de 2018.
A criadora da série, Diane English, não só se está a questionar sobre se o Presidente Donald Trump vai ver Murphy Brown como está a apostar com os argumentistas sobre isso. “Achamos que pode ser difícil para ele não dizer nada, e será bem-vindo”, diz Diane English numa entrevista durante as filmagens de Murphy Brown, em Astoria, Queens. “É bom para nós.”
Quando lhe perguntámos se os apoiantes de Trump irão ter algo pensado para eles na nova versão, responde rapidamente: “Não. Só se vão zangar.” Acrescenta que espera captar a audiência inversa de Roseanne no seu reboot, comédia que obteve enormes audiências mas acabou por despedir a sua estrela, Roseanne Barr, depois de ela ter feito comentários racistas no Twitter. A série foi rebaptizada como The Conners. Os comentários de English reflectem não só a polarização da política do país, mas também do entretenimento. Tal como é possível ganhar-se uma eleição colado aos extremos, parece que agora também é exequível que uma série faça o mesmo, e até num canal generalista.
Ainda assim, English diz: “Não queremos atacar Trump só porque sim, porque se torna enfadonho e toda a gente já o faz diariamente”.
Laura Kraft, uma das co-produtoras e argumentistas da série, assinala que para uma série como Murphy Brown o seu objectivo é ter um humor que goze com os grandes temas e não com os detalhes do quotidiano. “Queremos uma coisa que sobreviva à actualidade e que se mantenha relevante passado algum tempo”, diz Kraft, que também escreveu para Colbert Report.
Sexualidade e jornalismo
Murphy Brown foi atempada de uma forma que hoje não parece datada. Murphy tinha palavras duras para um colega que assediou sexualmente a sua amiga Corky Sherwood (Faith Ford). A série retratava trabalhadores, homens e mulheres, que não se tratavam como potenciais amantes mas como amigos com uma proximidade familiar. Quando Murphy deu à luz Avery, os colegas estavam no hospital com ela. Mais tarde, quando lhe foi diagnosticado o cancro da mama, Frank ofereceu-se para se despedir e tratar dela. (Não, nunca dormiram juntos. E ela trataria de si sozinha, obrigadinha, embora o tenha deixado acompanhá-la a uma consulta.) O reboot apanha algumas destas linhas narrativas – haverá um episódio com um caso #MeToo muito pessoal para Murphy, diz English.
O reboot também reflecte quanto o jornalismo mudou desde que a série saiu do ar. Na primeira versão da série, Murphy Brown idolatrava a lenda do jornalismo Walter Cronkite e parecia, como disse em tempos Diane English, o apresentador veterano “Mike Wallace, mas de vestido”. Na versão actual, é mais uma apresentadora ao estilo MSNBC do que uma pivô padronizada, posicionando o seu programa como entretenimento de resistência.
Numa entrevista conjunta com English, Candice Bergen está vestida à altura: usa uma camisola Ralph Lauren com uma bandeira americana só em branco e azul, evocando o público-alvo da série com as cores do Partido Democrata. Com “a horrenda riqueza desta administração, há tanto para ir buscar”, diz a actriz. Está sentada no sofá da sua casa ficcional em Georgetown, onde pouco mudou.
Estão ali as mesmas obras de arte que conhecemos da série na parede e o corredor do segundo andar ainda dá para a sala. Mas as prateleiras estão actualizadas: as biografias históricas de Doris Kearns Goodwin agora estão ao lado das críticas de Rachel Maddow ao poder militar norte-americano. Uma almofada bordada com a frase “Tired-Ass Honky Ho”, um insulto que atiraram a Bergen na Internet, está no sofá como lembrete de que as redes sociais dão um microfone a toda a gente. (Bergen gostou tanto dele que o tornou a sua linha de biografia no Instagram.)
Há ainda tacos de lacrosse ao pé da porta. Sim, como um bom millennial, Avery Brown voltou a viver com a mãe. “Para uma mulher que nunca foi boa em relações, só vê-la em casa com alguém é importante”, diz Bergen. “Eles podem criticar as manias um do outro”, diz McDorman. “Ela é uma jornalista famosa em todo o mundo e às vezes precisa que alguém a traga de volta à terra”, e Avery é uma das poucas pessoas que ela tem na sua vida que o pode fazer, porque para ele ela é só a sua mãe”.
Nas duas décadas que passaram sobre a série original, diz Bergen, ela é muitas vezes abordada por mulheres que dizem que Murphy Brown as inspirou a serem ambiciosas nas suas carreiras: “Deu-lhes uma injecção de coragem para fazerem o que sonham fazer”, diz. E para aquelas que viram as suas mães lidar com o cancro, a sitcom pode ser “muito emotiva”, acrescenta.
Só ver o cenário pela primeira vez foi tão poderoso para Bergen e Faith Ford (que retoma o seu papel como Corky Sherwood) que ambas choraram. “Somos todos muito próximos, não conseguíamos acreditar”, diz Bergen sobre a possibilidade de trabalhar novamente com os antigos colegas. “Só olhávamos uns para os outros e dizíamos ‘estou tão contente por estar a trabalhar contigo outra vez’”. Na filmagem, o público iluminou-se ao ver Charles Kimbrough, de 82 anos, retomar o papel de Jim Dial por três episódios e falar sobre os perigos da falsa equivalência quando os colegas enfrentam um dilema jornalístico.
Na série original, a liberdade de imprensa era ameaçada muitas vezes e de formas que desde então parecem estranhamente premonitórias. Murphy foi intimada a depor e foi-lhe pedido que revelasse as suas fontes numa história explosiva, mas não foi demovida e até passou algum tempo na cadeia por isso – episódios sobre os quais Judith Miller pode ter pensado durante o caso Valerie Plame. No segundo episódio da série, que foi emitido em 1988, a equipa do FYI lidou com um atirador, o que este Verão se tornou numa trágica realidade para um jornal em Annapolis.
Numa altura em que o Presidente chama diariamente à imprensa o “inimigo do povo”, Ford espera que o reboot de Murphy Brown humanize os jornalistas. “Podemos ter as emoções que eles não podem ter” em público, diz Ford sobre os jornalistas reais. Regalbuto vê o reboot como uma oportunidade para as personagens dizerem coisas “que as pessoas querem dizer e não foram ditas”.
Murphy Brown, em particular, nunca foi pessoa de ficar muda e quieta. “Nunca se sentirá confortável na reforma nem será alguém que se venha a tornar irrelevante”, diz English. “O que é excelente é que esta personagem já não é uma novata e ainda está em campo e é levada mesmo a sério, o que é, espero, inspirador para que as mulheres da nossa idade não arrumem as suas secretárias. Ainda há muito a fazer.”
Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post