Os médicos e o SNS

Ainda hoje, a par da Liberdade, o SNS foi das maiores conquistas da nossa Democracia.

O mês de setembro é um mês que nos remete, invariavelmente, para variadas reflexões sobre o Serviço Nacional de Saúde (SNS). É um dos temas prediletos da classe política no regresso de férias. Nada como soundbites trovosos sobre o SNS depois da habitual monotonia do interstício de verão. É uma espécie de sinal de vida.

É também uma fase pré-Orçamento do Estado, em que a pasta da Saúde é sempre um tema quente e alvo de críticas belicosas. Faz parte da silly season que o calor estica frequentemente até depois do início do outono.

É também em setembro que se celebra o Serviço Nacional de Saúde. Dia 15. É nesse dia que é regada, em Coimbra, junto ao rio Mondego, a oliveira que simboliza o Serviço Nacional de Saúde. Esta tradição, com oito anos, contou sempre com a presença de Dr. António Arnaut, figura incontornável da fundação e da defesa incansável do SNS. António Arnaut faleceu a 21 de maio deste ano.

Mas 15 de setembro, além de celebrar o SNS, é um dia de reconhecimento de todos os que contribuíram para a sua construção e pugnam pela sua manutenção. Além do papel político e legislativo de António Arnaut, é mais do que justo relembrar o papel dos médicos na edificação do sistema público de saúde.

Pela primeira vez, no final dos anos 50, quando os ventos do Estado-providência começavam a varrer a Europa, um grupo de médicos criou um movimento, que culminaria na publicação pela Ordem dos Médicos do “Relatório sobre as Carreiras Médicas”, embrião germinativo do que viria a ser o Serviço Nacional de Saúde.

Personalidades como Miller Guerra, Albino Aroso, Mário Mendes, António Galhordas ou Jorge da Silva Horta criaram, na adversidade de uma ditadura, um ambiente propício à criação de uma assistência médica universal, ao serviço de todos, alicerçada em princípios de igualdade e justiça. A importância deste movimento foi de tal ordem que o regime acabou por dar alguns passos, ainda tímidos, com a criação de um estatuto hospitalar ou de serviços médico-sociais.

É inegável a participação decisiva dos médicos na criação do SNS. De tal forma que Mário Mendes, secretário de Estado da Saúde no Ministério dos Assuntos Sociais liderado por António Arnaut, encabeçou o grupo de trabalho responsável pela elaboração do projeto legislativo que daria corpo à Lei 56/79, de 15 de Setembro, Lei do Serviço Nacional de Saúde. Ainda hoje, a par da Liberdade, o SNS foi das maiores conquistas da nossa Democracia.

Não menos prodigioso e digno de registo foram os anos que se seguiram em que médicos de todo o país, através do Serviço Médico à Periferia, levaram o SNS, com enormes dificuldades, aos cantos mais recônditos do país em que, até então, os cuidados de saúde eram uma miragem.

A história do SNS é uma história de muitos homens e mulheres, de coragem, de visão e de resistência que se vai perdendo na bruma da memória.

O SNS resistiu não apenas por mero acaso. Está profundamente sustentado no altruísmo e empenho dos seus profissionais. É indesmentível que atravessa enormes dificuldades que nenhuma propaganda política ou falsos discursos de indignação conseguem camuflar. Serviços de Urgência caóticos, falta de material e dificuldade no acesso a medicamentos, péssima gestão de recursos humanos, sistema informático disfuncionante e mal adaptado, inexistência de articulação entre os centros de saúde e os hospitais: é uma lista longa de problemas sem resolução à vista e sem um vislumbre de uma qualquer reforma.

A história ensinou-nos que há os resistentes, corajosos e visionários, motor das mudanças e, também, aqueles que simplesmente deixam as coisas acontecer e extinguir. Hoje, o SNS arrisca-se a desaparecer.

Se o SNS não é sustentável a Democracia também não o será, tal como afirmou recentemente o bastonário da Ordem dos Médicos. Não poderia estar mais de acordo.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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