“Há algo dentro de ti” são as palavras que cedo se infiltram nos nossos ouvidos para mais tarde ecoarem nos créditos finais do último filme de Joachim Trier, Thelma, um filme-metáfora que revela uma nova faceta do realizador norueguês na sua até então exploração pela efemeridade da memória, o axioma da morte. Desta vez, numa hibridez de género que pede a não-categorização do filme, Trier dedica-se a trabalhar aquela errática intensidade com que o movimento íntimo e interior, consequência do raspar por um sentido de ser e estar no mundo secreto de uma rapariga, é manifestado. E consegue, no processo, evidenciar a até ali imperceptível repressão social e moral infligida no decorrer dos vários inícios da sua jovem vida.
Thelma é uma rapariga como qualquer outra. Excepto que não é. Ela não é como eu, como tu, como ela. Thelma tem algo dentro dela que, quando accionado por uma atracção desigual, um desejo incompreensível, combate o seu estado pré-condicionado e se manifesta, física e involuntariamente, através de um ataque dito não-epiléptico psicogénito. Narrado como um sintoma genético, esta é a corrente que desfibrilha a verdade por detrás do desejo, diz-nos o filme quando chega ao seu segundo acto. O feitiço (ou será milagre?), curiosamente mais poderoso que a rapariga, evidencia a sua natureza num acto sobrenatural, fazendo dela uma vítima à mercê da vulnerabilidade do seu corpo ou, de igual forma, na agente do seu “próprio querer”, aquando do desprendimento autorizado da sua mente nesse corpo, dessa libertação para com o mundo ansiado, escondido em seu redor. Thelma consegue impulsionar o que mais cobiça para que se concretize. Presa numa desconexão com ela mesma, provocada pela sua família, a sua natureza torna-se táctil. A tampa que a amparava explode. E pela dor clínica de um ataque neurológico, é libertado o impulso para a atopia do mundo. Assim, e uma vez aceite, decorre uma confrontação. A confrontação com quem ela poderá ser, com o significado de todas as coisas, com o querer amar-se, para não só ser amada mas também deixar-se sê-lo. Enquanto mulher.
Aparentado a Carrie de Stephen King, Trier não é o primeiro a relatar a assim denominada histeria, a loucura feminina. No cinema, Cassavetes é capaz de ser o mais ilustre, até hoje, contador de histórias dessas temáticas. Não só as desmistificava, como também o molde escolhido para encaixilhar esse seu "contar" se centrava numa volatilidade, numa modulação emocional com que a sua câmara corria olhares, mãos, e assim parava para as contemplar, no seu examinar do cinema-gesto, do cinema enquanto ser feminino.
Também em Thelma, há uma ideia de uma emoção, para lá do medo pelo desconhecido, para lá do "ser-de-idade". Há a mulher sob o efeito de uma possessão, habitualmente vista através de uma lente masculina como um objecto aberto à infiltração de algo que arrisca, não só o controlo do seu ser, mas também da sociedade em redor, do olhar com o qual a mulher sedenta por significado não se pode dar à auto-descoberta livre de condicionantes exteriores. Épicas são as figuras de Lady Macbeth, de Ofélia em Hamlet, da mítica Medusa, até de Madame Bovary ou de Hedda Gabler — tidas como intrinsecamente dementes em virtude da sua feminilidade, sujeitas a uma vulnerabilidade que as enfraquecia e as condenava à manipulação daqueles à sua volta — na sua oposição às normas e conformidades sociais, independentemente do registo temporal no qual se encontravam.
Durante décadas, a literatura descreveu o prognóstico para uma doença dada à mulher primeiro, uma crença alimentada depois por elas, para sempre instruídas à manutenção das suas permanentes edições. Havia que evitar o disparar do alarme que se fazia sentir quando uma mulher era, na sua introspecção, alertada por si mesma a ser alguém, a criar uma história sua para si, uma versão que podia ser expandida, e onde o significado de tal era atribuído e dirigido só por ela, sem aditivos. Trier quer, com o seu filme, avisar-nos. Trier quer que acordemos. Thelma não é como nós. Thelma acorda. Muda. Metamorfoseia-se. Thelma deixa-se amar. Thelma colide com a necessidade de se tornar nela, de se entregar à loucura livremente. E como Vivian Gornick afirmava no seu ensaio, temos de “(…) nos libertar, combatendo internamente. Ser derrotadas pelo esforço. Perder a batalha numa grande escala. Enlouquecer. (…) A loucura é a doença simbólica da vida”.
Thelma ajuda-nos a compreender a urgência do acto.